Qualquer restaurateur pode confirmar: o brioche se tornou pop graças ao movimento incessante da guilhotina. A culinária francesa deve muito ao símbolo afiado da revolução que tentava inverter a pirâmide social empilhando cabeças nobres. Com esse, digamos, corte na corte, os chefs irremediavelmente sem patrões saíram dos palacetes para ganhar a vida. Foi essa diáspora de refinados cozinheiros dos porões dos castelos para as ruas de Paris uma das razões que permitiram o surgimento dos restaurantes no século XVIII e que tornaram possível aos sans culottes, o povo, entender o que, enfim, significava gastronomia. "O advento dos restaurantes permitiu à grande cozinha aperfeiçoada nas mansões particulares da nobreza e dos homens de finanças do século XVIII sobreviver e desenvolver-se", explica Jean-François Revel, em seu livro Um banquete de palavras. Para comemorar o 14 de julho, data da queda da Bastilha, primeiro marco da vitória popular contra o absolutismo, restaurantes do Rio de Janeiro e de São Paulo prepararam cardápios que homenageiam esses tempos sangrentos, mas definitivos para a boa mesa. É a chance de o público esquecer o ressentimento histórico e fazer as pazes com Maria Antonieta, a rainha da época que disse para a patuléia comer brioches já que não havia pão. Ela, sem dúvida, sabia o que era bom.

O chef Fabrice Lenud fez uma longa pesquisa para elaborar o menu fixo 14 juillet do Aquarelle, no hotel Sofitel, em São Paulo. De entrada, por exemplo, ele preparou o bouillon divin, um consomê de frango, cordeiro e vitela. Pelo resgate de Lenud, por volta de 1760 esse prato era servido em botequins com o nome de bouillon restaurant, por ser um caldo forte que levantava até defunto. Daí o nome que batizaria o conceito de "salão fino onde se serve comida" que surgia. Um depoimento do enciclopedista Diderot pode dar uma dimensão dessas novas casas. "Se tomei gosto pelos restaurantes? Sim, realmente um gosto infinito. Neles se paga um pouco caro, mas se come a hora que quiser.(…) Come-se sozinho, cada um tem seu pequeno compartimento, onde a atenção divaga; a própria hospedeira vem ver se não falta nada. Isso é maravilhoso e me parece que todos ficam contentes". As opções de pratos principais sugeridas por Lenud retomam também as referências do período revolucionário. O Bouchées à la reine aux Ris de Veau – folhado de cogumelos, frango, glândulas de vitela e presunto – era uma iguaria desenvolvida pela mãe de Maria Antonieta e que a mulher de Luís XVI aprimorou. "A receita original era bem mais rústica. A rainha mandou seu chef acrescentar novos temperos e os cogumelos", explica ele. Para finalizar, o irreverente Lenud escolheu uma bomba gelada em alusão ao clima belicoso de então.

Jantar às quatro No tradicional Le Coq Hardy, também em São Paulo, o cardápio traz um folheto explicativo dando a dimensão do impacto da revolução para a cultura gastronômica francesa. Foi depois da redentora que os jantares passaram a ser servidos à noite. Hábito criado pelos albergues para atender aos deputados da Assembléia Constituinte que trabalhavam madrugada adentro. Até então a corte de Luís XVI se refestelava à tarde e em especial depois da caça, já que atirar em aves era o que aqueles senhores cheios de babados mais gostavam de fazer. Todos os pratos do menu degustação receberam nomes de revolucionários e, segundo o dono do restaurante, Vicenzo Ondei, eram iguarias típicas da época da tomada da Bastilha. O ravióli de perdiz com trufas, por exemplo, ganhou um sobrenome à la Mirabeau, em homenagem ao deputado e grande orador do Parlamento. O chef Erick Jacquin, do Café Antique, brincou também com a decapitada Maria Antonieta, finalizando o menu de camarão com feijão branco com a sobremesa que tem como base o brioche, o tal pãozinho que a fez perder a cabeça, no bom e no mau sentido.

 

Liberdade e igualdade Comida francesa tradicional não costuma ser o forte do Le Saint-Honoré, considerado pelos gourmets cariocas como um dos cinco melhores restaurantes da cidade. A casa oferece uma comida bem mais leve do que a que sustentava os rebeldes do século XVIII. Mas no 14 de julho o chef Pierre Landry vai se render à sustança e oferecer o coq au vin – frango cozido no vinho tinto. "É um prato rico, que vem acompanhado de um molho cheio de ingredientes. Antigamente esse molho era feito com sangue, mas isso acabou se tornando politicamente incorreto", explica Landry. No Garcia e Rodrigues, no Leblon, os clientes vão poder comemorar com o Cassoulet de Toulouse, uma espécie de feijoada com carnes de porco, carneiro e pato. Prato bem mais antigo do que o afiar das lâminas das guilhotinas, trata-se de um clássico, que com certeza vai provocar a inveja do parceiro de mesa. E já que estão todos imbuídos do espírito de "liberdade, igualdade e fraternidade", não se acanhe, conceda-lhe uma garfada.

 

Bouillon restaurant
Consomê de frango, Cordeiro e Vitela

Ingredientes:
150 gramas de peito de frango; 150 gramas de bife de vitela; 150 gramas de filé de cordeiro; 1 litro de água; 300 ml de vinho branco (seco); sal a gosto; 1 cenoura; 1/2 alho-porro; 4 ovos

Modo de preparo
Cozinhe as carnes de frango, de cordeiro e a vitela em água fervente. Adicione o vinho branco, a cenoura, o alho-porro, a cebola e o sal no fogo por 60 minutos. Separe as claras e bata em ponto de neve. Quando a água estiver fervendo, adicione as claras em neve. Quando se formar um anel no centro da panela, retirar cuidadosamente o consomê, passe em uma peneira e reserve. Corte as carnes em cubos e os legumes em tiras, após cozidos. Coloque em um prato fundo e em seguida adicione o consomê.