Médicos, à primeira vista, parecem ser aquelas pessoas para quem religião e doença são tão díspares quanto água e óleo. Ou seja, nunca se misturam. Paira sobre eles, inclusive, um certo consenso de que só conseguem analisar o ser humano através dos olhos da ciência, vendo o paciente sentado à sua frente apenas como um conglomerado de células. Uma nova tendência, no entanto, está colocando por terra essa impressão equivocada de que medicina e ceticismo andam juntos. Vários médicos simplesmente estão associando a seus trabalhos rotineiros princípios de suas crenças religiosas. No receituário, eles indicam, além dos remédios que a medicina inventou, remédios sugeridos por suas próprias religiões. E isso inclui desde passes, receitados por médicos espíritas, até ir para o confessionário, tratamento indicado por profissionais católicos.

Como reflexo desse movimento, grupos de médicos estão se unindo e formando associações que têm a religião como denominador comum. Os médicos católicos, por exemplo, fundaram a Associação Católica de Psicólogos e Psiquiatras de São Paulo. A entidade reúne aproximadamente 300 profissionais da área. Pelo menos uma vez por mês o grupo se reúne para debater lições do evangelho e discutir questões científicas sob os olhos da religião. A Associação Medica Espírita (AME) do Brasil é outra dessas associações. Fundada em junho de 1995, possui sedes em 19 Estados do País. Só em São Paulo, a AME reúne aproximadamente 250 médicos espíritas das mais variadas especialidades. E a tendência se fortalece tanto que, há um mês, cerca de 800 profissionais do Brasil e de outros cinco países estiveram reunidos em São Paulo para fundar a AME internacional.

Em Campinas, no interior de São Paulo, existe uma prova de que medicina e religião começam mesmo a se misturar. Trata-se do neurologista Núbor Facure, 59 anos, espírita desde os sete anos e integrante da AME. Professor titular de neurocirurgia da Universidade Estadual de Campinas, Facure usa muitos dos preceitos do espiritismo em seu trabalho como médico. Para se ter uma idéia, em seu consultório as portas estão sempre abertas para os espíritos que, porventura, desejarem participar das consultas, e há sempre cadeiras vagas para eles.

Na verdade, o espiritismo acredita na existência de espíritos que retornam à Terra em sucessivas encarnações até que atinjam a perfeição. No trabalho de Facure, a religião entra quando a medicina parece não ter mais respostas. "Quando a medicina não dá conta de explicar um determinado fenômeno, aconselho meus pacientes a se dirigirem a um centro espírita", diz. Esse encaminhamento se baseia na crença de que uma determinada "doença" espiritual pode se manifestar, fisicamente, de forma muito semelhante à epilepsia, por exemplo. Por isso, pode não responder aos tratamentos tradicionais. "Por outro lado, quando esse paciente vai buscar a cura espiritual do problema nos centros, tomando passes, ou conversando com os médiuns, a melhora é gritante", conclui. Foi examente o que aconteceu com o agrônomo e professor aposentado Walter Acorsi, 86 anos. Ele já era espírita há mais de 50 anos quando procurou tratamento para as dores de cabeça que sentia. "Eram dores terríveis e eu já havia tentado vários remédios, mas nada adiantava, até que encontrei Facure e me deparei com o tratamento ideal", conta Acorsi. O tratamento a que se refere o agrônomo foi a associação de medicamentos alopáticos a cirurgias espirituais. "Minha dor, como qualquer outra dor, era resultado das minhas ações em vidas passadas", acredita o agrônomo.

 

Catolicismo Já o psiquiatra Paulo Maurício Pinto, 51 anos, trabalha de acordo com os preceitos do catolicismo. Formado pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo em 1973, Paulo Maurício é devoto, há 12 anos, da Renovação Carismática Católica, uma espécie de versão católica do pentecostalismo. A Renovação defende o culto a Deus através de formas mais emotivas e teatrais. Evangélicos ou católicos, os pentecostais utilizam, como texto referencial básico, o relato bíblico dos Atos dos Apóstolos. Segundo esse relato, no dia de Pentecostes, 50 dias após a Páscoa, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos concedendo-lhes "carismas" (dons) entre os quais estão a cura e a profecia. Expulsar o demônio e falar em línguas estranhas também são dons do Espírito Santo que os adeptos da Renovação acreditam que recebem por meio da fé, em seus grupos de orações.

Paulo Maurício entrou para este mundo pelas mãos da esposa, Maria Clara, que frequentava grupos de orações. Antes, considerava-se católico, mas admite que não era praticante. Aos poucos, o psiquiatra começou a associar sua religiosidade a seu trabalho. Na prática, isso significa que, além de orar pelos pacientes, ele chega a aconselhá-los a buscar ajuda também por meio da fé. "Quando o paciente fala em ‘culpa’ e eu noto espaço para introduzir a religião, o encaminho à confissão em uma igreja da qual goste", exemplifica o médico.

Perdão A agente de viagens Erminda Kawabata, 48 anos, foi uma das pacientes que saíram do consultório de Paulo Maurício com a recomendação de procurar a cura na igreja. Apesar de sempre ter acreditado em Deus, Erminda não era devota de nenhuma religião específica quando foi buscar ajuda psiquiátrica. A agente de viagens perdeu o pai, em 1990, sem tê-lo conhecido e ficou bastante abalada. "Culpava minha mãe e Deus por não terem me concedido o direito de conhecer meu pai e só pensava em suicídio", lembra. Depois de quatro sessões psiquiátricas, Erminda foi medicada com remédio convencional, mas se convenceu de que seu maior problema era o fato de não ter conseguido perdoar, nem a Deus nem a mãe. A pedido do psiquiatra, passou a frequentar um grupo de oração. Já no segundo encontro do grupo, a agente garante que sentiu grande consolo. "Me senti tocada e amada por Jesus", lembra. "Em dois meses, tive alta do tratamento e apenas prossegui com os plantões de oração", conta Erminda, que hoje faz trabalhos voluntários para algumas igrejas de São Paulo.

Entre esses novos médicos de fé há até aqueles que utilizam uma espécie de associação de princípios defendidos por várias religiões. É o caso do endocrinologista e homeopata Eduvaldo Dorta, 48 anos. "O importante é a fé que o paciente desenvolve diante de um determinado problema, e não a religião a que ele pertence. E qualquer religião pode levá-lo a uma atitude mais contemplativa da vida, menos racional. Essa postura trará a convicção da cura e, dessa forma, haverá uma melhora progressiva", defende. Na tarefa de ajudar os pacientes a atingir essa postura, Dorta, cristão convicto mas dono de vasto conhecimento sobre as religiões orientais, costuma indicar, juntamente com os remédios convencionais, tanto a meditação quanto a preceterapia – terapia da reza. A produtora Tânia Pousada, 43 anos, aprovou o tratamento. Paciente de Dorta desde 1994, ela, por meio da meditação e de uma combinação entre remédios alopáticos e homeopáticos, está conseguindo grandes avanços em relação à cura de um problema na glândula tireóide, descoberto há um ano e meio. Como consequência do distúrbio, Tânia desenvolveu uma exoftalmia (distúrbio em que os olhos ficam proeminentes) e, desde então, passou a meditar. "Vivia estressada e a meditação me ajudou a relaxar", diz. "Minha exoftalmia já melhorou cerca de 70%. Isso mostra que a combinação dos tratamentos junto com minha vontade de ficar boa trouxeram grandes resultados", comemora.