Tipificado como crime na lei de contravenções penais, o jogo do bicho foi oficializado em Goiás. A tradicional fezinha no macaco, no burro ou na borboleta, que sofre a perseguição da polícia em outras regiões do País, pode ser feita pelos goianos sob o guarda-chuva do governo do Estado. Desde 1995, são os principais banqueiros do jogo do bicho em Goiânia quem controlam a loteria estadual. Para manter a aparência de perfeita legalidade, a transferência da operação da Loteria do Estado de Goiás (LEG) aos bicheiros foi feita sob a forma de um contrato de concessão pública com a Gerplan, uma empresa de fachada que teve dez sócios diferentes nos últimos três anos. Celebrada na gestão do ex-governador e senador Maguito Villela (PMDB), padrinho de casamento de um dos grandes bicheiros goianos, Carlinhos Cachoeira, a concessão chegou a ser referendada pelo Tribunal de Contas do Estado. No final do ano passado, coincidindo com o ocaso dos 16 anos de seguidas administrações peemedebistas em Goiás, o convênio foi prorrogado a toque de caixa até o ano 2010. Apesar de eleito com a promessa de renovar a política goiana, o tucano Marconi Perillo manteve intocado o contrato até sexta-feira 9. Durante os seis primeiros meses de governo, não ousou mexer com os bicheiros, históricos financiadores das campanhas eleitorais no Estado. Ao saber que a reportagem de ISTOÉ havia descoberto a maracutáia, o governador mudou, porém, subitamente de comportamento. Demitiu na sexta-feira mesmo o presidente da LEG, Alcides Ribeiro Filho, e mandou cancelar a concessão da Gerplan. "Pedi uma investigação ao serviço de inteligência do Gabinete Militar, que constatou a veracidade da denúncia com provas materiais", tentou safar-se Perillo.

 

Testas-de-ferro Não era necessário mobilizar os arapongas da PM para verificar a oficialização do esquema do jogo do bicho. Bastava ao governador mandar um contínuo sair do Palácio das Esmeraldas e ir a qualquer esquina em Goiânia. Lá o apostador do bicho em Goiás dispõe até de alternativas diferentes para fazer o seu jogo. Pode jogar livremente à velha moda manual em bancas que ostentam os logotipos da LEG. As apostas são feitas por apontadores em cartelas que levam o carimbo da Paratodos, a marca do jogo do bicho do Rio de Janeiro. Ou pode optar pela versão eletrônica oficial, rebatizada de "Palpiteca", em que as apostas são recolhidas por computadores nas casas lotéricas. A reportagem de ISTOÉ percorreu vários pontos de jogo em Goiânia e testou as duas versões. Primeiro, foi a uma banca, onde apostou R$ 5 no número três (o algarismo do burro), na cabeça e cercado. Depois, andou mais cinco metros e entrou numa casa lotérica da LEG, em que repetiu o mesmo jogo na "Palpiteca". Constatou que um e outro são a mesma coisa. As apostas são feitas pelo mesmo sistema e a única diferença é que, ao fazer o jogo eletrônico, o apostador recebe um comprovante com o timbre da loteria estadual. Os prêmios do sorteio podem ser conferidos na LEG ou na sede da Look, uma associação criada pelos bicheiros goianos. "A ‘Palpiteca’ é o jogo do bicho. Não há diferenças", confirmou Cristiane dos Santos, 32 anos, que trabalha há quatro meses como funcionária de uma casa lotérica no centro de Goiânia.

A coincidência não é por acaso. Segundo relatos que ISTOÉ ouviu de várias fontes no governo de Goiás, no Ministério Público e na Justiça, os quatro grandes banqueiros que dominam o jogo do bicho em Goiânia são os mesmos que controlam a exploração dos jogos da loteria estadual: Carlinhos Cachoeira (fillho de Sebastião Cachoeira, o bicheiro pioneiro de Goiás), João Carlos Rocha, Messias Ribeiro e Alencar Júnior, ex-campeão brasileiro de automobilismo. Até 1995, eles brigavam por espaço entre si e atuavam de forma clandestina. Durante o governo Maguito Villela, deram o pulo-do-gato. Uniram-se e formaram em março daquele ano a Gerplan. Quatro meses depois de criada, a empresa, com um capital de apenas R$ 70 mil e registrada em nomes de testas-de-ferro, assumiu a operação dos jogos da LEG por meio de um convênio com o governo do Estado. "Apesar de constar nos documentos outros sócios, os bicheiros são os verdadeiros donos da Gerplan. Eu me reportava sempre a eles", atesta o engenheiro Sérgio Augusto, ex-funcionário da empresa, que foi um dos responsáveis pela montagem do programa de informática utilizado na "Palpiteca".

 

Mina de ouro Inicialmente, conforme o texto do contrato obtido por ISTOÉ, a Gerplan obteve licença para distribuir bilhetes da loteria estadual em troca do compromisso de "viabilizar financeiramente, sanear as dívidas" e fazer investimentos na expansão das atividades da LEG. Pelo acerto, os bicheiros, por meio da Gerplan, tornaram-se também responsáveis pela arrecadação da loteria, com direito a reter um porcentual do valor das apostas. Um ano depois, a Gerplan já apresentava no papel um quadro de sócios completamente diferente do existente na data de criação da empresa, e o contrato com a LEG sofreu uma reforma de alto a baixo. Com a edição de um termo aditivo de re-ratificação em julho de 1996, o prazo de validade da concessão foi esticado de 30 para 60 meses. Incluiu-se também no contrato uma cláusula que legalizou o lançamento da "Palpiteca", oficialmente chamada de sistema de concurso de prognósticos.

 exploração oficial do jogo do bicho, uma tradição em Goiás tão forte como é no Rio de Janeiro, revelou-se uma mina de ouro. Implantada em uma rede de 300 lojas de casas lotéricas, a "Palpiteca" é o jogo que mais rende apostas no Estado. Bate todas as loterias exploradas pela Caixa Econômica Federal e garante à Gerplan o faturamento mensal em média de mais de R$ 2 milhões. Na quinta-feira 8, a "Palpiteca" ganhou até chancela do governo federal. A LEG assinou um convênio com a Caixa que pretende ampliar para mil o número de postos em que os apostadores goianos poderão fazer a fezinha no jogo do bicho oficial. Com essas cifras envolvidas, assim que o reinado peemedebista em Goiás começou a ruir nas eleições para governador realizadas no ano passado, os bicheiros trataram imediatamente de assegurar seu filão. Mesmo com o vencimento da concessão marcado só para 2001, a Gerplan, dois dias depois da realização do primeiro turno das eleições, encaminhou à LEG uma proposta de prorrogação do contrato por mais dez anos. Ela foi celebrada no dia 21 de outubro de 1998, com a assinatura do então procurador-geral do Estado, Gil Alberto Resende e Silva. Curiosamente, o parecer em que Resende Silva dá aval à reformulação do convênio, com a justificativa do alcance social da medida, leva uma data posterior: 30 de outubro de 1998. No final de novembro, um despacho do governador de Goiás em exercício, Helenês Candido, acabou de sacramentar os direitos da Gerplan sobre a exploração dos jogos da loteria estadual até 2010.

Além de prorrogar a concessão, os bicheiros embutiram na alteração contratual uma cláusula que lhes conferiu o monopólio da exploração das máquinas caça-níqueis no Estado. Sob o pomposo pretexto de modernizar os equipamentos lotéricos da LEG, a Gerplan comprometeu-se a fazer investimentos de R$ 9,4 milhões na instalação de mais de mil terminais de videopôquer e outros jogos de azar eletrônico. Com autorização de funcionamento fornecida pela mesma LEG, o órgão credenciado pelo Ministério dos Esportes a dar esse tipo de alvará em Goiás, a Gerplan colocou máquinas caça-níqueis em bares, casas de diversões e até shopping centers de Goiânia, embora a Lei Pelé autorize a sua instalação apenas em casas de bingo ligadas a entidades esportivas. A cláusula deu também o instrumento legal para os bicheiros goianos afastarem os concorrentes de outros Estados interessados em entrar no mercado de caça-níqueis.

Confisco A pedido da LEG, a Polícia Civil fez este ano uma blitz para apreender as máquinas instaladas no território goiano por outras empresas que não sejam a Gerplan. "O governo pratica contravenção penal ao fazer parcerias com empresas que exploram de forma notória o jogo do bicho", ataca Waldomiro Ferreira, advogado da República Games, de propriedade de Carlos Roberto Martins, uma das empresas que tiveram máquinas confiscadas. "A conivência do governo existe", assume o delegado Eurípedes da Silva, chefe da divisão de costumes e meio ambiente da Polícia Civil de Goiás, que seria a responsável pela repressão ao jogo do bicho. "Mas não sou eu que vou tomar a iniciativa de reprimir os bicheiros. A hierarquia é uma pilha de penicos. Sou o último e acato ordens do meu diretor", completa o delegado. Por cumprir estritamente ordens superiores, o policial pode estar agora na mira do governador Marconi Perillo. Na sexta-feira 9, como parte da estratégia de tentar desvincular o seu governo do esquema do jogo do bicho no Estado, Perillo diz que também determinou uma investigação das ligações dos bicheiros com a LEG e a polícia.

Os banqueiros, claro, negam que sejam bicheiros ou tenham qualquer relação com a Gerplan, que no papel atualmente pertence a Raimundo Tomaz Alves. Na última quinta-feira, a reportagem de ISTOÉ tentou falar com Tomaz Alves na sede da empresa em um dos bairros de Goiânia, mas foi avisada de que ele estava em viagem sem previsão de volta. "Não sou dono da Gerplan. Conheço profundamente o funcionamento dos jogos de azar, mas não passo de um provedor de tecnologias", diz o bicheiro Messias Ribeiro, que se apresenta oficialmente como diretor da empresa Base Tecnologia, fornecedora das maquininhas utilizadas para fazer as apostas na "Palpiteca". O Ministério Público de Goiás, porém, tem uma pilha de documentos que desmentem Messias e mostram que as relações com o jogo do bicho vão muito além do que ele admite. Os promotores têm em seu poder, por exemplo, uma cópia de fax transmitido pelo bicheiro da sede da Gerplan para Nei Dias Percussor, diretor administrativo e financeiro da LEG. Há também documentos que provam troca de ofícios durante o governo Maguito entre o ex-diretor-geral da LEG Joaquim Tomaz de Aquino e João Carlos Rocha, diretor-presidente da Look, a associação dos bicheiros.

Em um dos ofícios encaminhado ao diretor da LEG, o bicheiro João Carlos pede autorização para o funcionamento de 11 máquinas caça-níqueis em caráter experimental. As únicas máquinas que recebiam autorização da LEG para funcionar eram as instaladas pela Brasgames, uma empresa que funciona ao lado da Gerplan e foi criada pelos bicheiros para importar esses equipamentos da Espanha. Não por acaso, a empresa tem como um dos sócios Jovair Ribeiro da Silva, irmão do bicheiro Messias. Com a implosão do esquema do jogo do bicho, o Ministério Público vai ter condições de investigar outras denúncias, entre elas a de que a folha de pagamento dos funcionários da LEG era integralmente paga pelos bicheiros. O presidente da comissão de fiscalização da LEG, José Antônio de Barros Filho, responsável pela supervisão do contrato de concessão, despachava, na verdade, de uma sala instalada no Q.G. da Gerplan.