Sem pendor para enfrentar as rixas políticas, Fernando Henrique tem dependido muito de Antônio Carlos Magalhães, senador de 71 anos que há mais de 30 é um astuto manipulador de poder e influência." A edição de quinta-feira 8 do jornal The New York Times deixou os tucanos esperançosos. Pode ser que agora o presidente globalizado do Brasil finalmente comece a se mexer. Um membro do alto tucanato faz até brincadeira com o vezo intelectual do nosso estadista: "Só falta o Le Monde. Basta sair uma notinha no prestigioso jornal da intelectualidade francesa, e Fernando Henrique acaba criando coragem para se livrar da tutela de ACM." Nesses seis meses de seu segundo mandato, um acuado FHC empurrou decisões com a barriga e cedeu a tal ponto a gulosos aliados que acabou entrando numa encruzilhada política. Com a popularidade em queda livre, nos próximos dias FHC terá de driblar sua própria indecisão e fazer uma opção entre colocar ordem na casa e recomeçar o governo, mesmo desagradando a parceiros políticos, ou se submeter de vez aos caciques aliados. "Hoje eu não sei com quem está o controle político do País, mas saberei depois da reforma ministerial", afirma o governador de São Paulo, Mário Covas, num contraponto às pressões dos presidentes do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), e do PMDB, senador Jader Barbalho (PA), para manter seus feudos na Esplanada dos Ministérios. Em meio a esse fogo cruzado, Fernando Henrique promete definir até a quinta-feira 15 se dará ou não uma nova cara ao governo.

Essa não é a única saia justa de FHC. Numa reunião na Casa Civil da Presidência, na manhã do dia 30 de junho, a turma do ministro Clóvis Carvalho (leia coluna fax Brasília) resolveu fazer um agrado a ACM para tentar salvar a pele do chefe na reforma ministerial. Redigiu a emenda Ford, um pacote de benesses feito sob medida para estimular a montadora americana a construir uma fábrica na Bahia. Elaborada a toque de caixa, a proposta recebeu o aval dos líderes governistas e horas depois foi aprovada no Congresso. "Eu não sabia dessa proposta. Isso não deveria ter sido feito, vai causar problemas no Mercosul", reclamou Fernando Henrique na manhã seguinte. O Palácio do Planalto, então, vazou que FHC vetaria a emenda. Um dia antes do caos telefônico nas ligações interurbanas, o irritado senador Antônio Carlos disparou de Salvador um telefonema para o Palácio da Alvorada. Com seu estilo habitual, peitou o presidente e ameaçou romper com o governo caso sejam vetadas as regalias concedidas à Ford. "Fernando Henrique não fará isso com a Bahia", tem repetido ACM, que na última semana cancelou compromissos em São Paulo para comandar de seu terreiro baiano a batalha contra o veto. Desde então, o senador entrou em greve: só sai da Bahia depois de uma decisão presidencial, que tem de ser tomada até o próximo dia 21, prazo final para a reedição da MP que dá vantagens às montadoras que se instalarem no Nordeste.

Sem querer bater de frente com o cacique baiano, Fernando Henrique vem resistindo à pressão montado em pareceres técnicos do Ministério da Fazenda e do Itamaraty, contrários à concessão de tantos privilégios à Ford. Mas, mesmo na área técnica, ACM vem reagindo. Tem usado para isso munição fornecida pelo ministro do Orçamento e Gestão, Pedro Parente, que resolveu mostrar maior obediência a seu padrinho político do que a seu chefe formal, o presidente da República. Antônio Carlos quer mais. Está irritado com a "infidelidade" do ministro Malan, a quem considera ingrato depois de tudo que fez para mantê-lo no cargo. "Ele está é com ciúme da minha boa relação com o Armínio (Fraga, presidente do Banco Central)", ironizou em conversa com correligionários.

Em outra frente de batalha, Fernando Henrique pretende mexer em sua equipe numa tentativa de recuperar parte da popularidade perdida. Como quer fazer uma omelete sem quebrar ovos, também está se enroscando nessa empreitada. Depois de deixar correr solta a fritura de ministros como Celso Lafer, do Desenvolvimento, e Francisco Turra, da Agricultura, mandou recados de que gostaria de mantê-los no governo. Na quarta-feira 7, o presidente exibiu por inteiro esse seu jogo dúbio. Escalou o secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, para uma conversa com o ministro da Justiça, Renan Calheiros. Amigo e íntimo interlocutor de FHC, Gregori relatou ao ministro os fartos elogios presidenciais a seu desempenho na Justiça que teria ouvido numa longa conversa com Fernando Henrique que entrou pela madrugada da segunda-feira 5. Enquanto o ego de Renan era inflado, o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, era enviado por FHC para convidar o ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence a trocar a toga pelo comando do Ministério da Justiça. Pertence não topou.

Durante um jantar no Palácio da Alvorada que teve a participação do governador do Ceará, Tasso Jereissati, na noite da mesma quarta-feira Pimenta informou a FHC sobre a recusa de Pertence. O governador não estava lá por acaso. Cogitado para o lugar de Clóvis Carvalho na Casa Civil, ele está ajudando o presidente na reforma ministerial. Um dia depois, Tasso voltou ao Alvorada para almoçar com o presidente. "O que não dá é para ficar inerte e sem solução para essa enorme confusão na base parlamentar. Mais vale meia base na mão do que uma base inteira voando", disse Tasso após o almoço. O governador e Pimenta não escondem o empenho para afastar do governo a ala peemedebista comandada pelo senador Jader Barbalho. Querem as cabeças de Renan Calheiros e do secretário de Políticas Regionais, Olívio de Angelis, abrindo espaço no primeiro escalão para uma ala mais moderada do partido, identificada com as posições do governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, e do ex-governador gaúcho Antônio Britto. Com tantos apadrinhados de peemedebistas em cargos federais, o ministro das Comunicações avalia que pelo menos metade do partido continuará fiel ao governo. Essa aposta no racha do PMDB, porém, divide o próprio alto tucanato. Além de não agradar a Fernando Henrique, é combatida pelo ministro da Saúde, José Serra. "Isso seria um grave erro político", avalia Serra, que tem trabalhado para reaproximar a cúpula do PMDB do Planalto.

O difícil nesse jogo todo é saber quem, de fato, está falando pelo presidente. Quando perguntado sobre o convite a Sepúlveda Pertence, Fernando Henrique responde de maneira evasiva: "Não fui eu quem fez o convite." Uma maneira de dizer que não é ele quem está colocando a prêmio a cabeça do atual ministro Renan Calheiros. Colocado contra a parede sobre o assunto pelo ministro dos Transportes, Eliseu Padilha, que é correligionário de Renan, o presidente saiu-se pior ainda: "Não é só o lugar dele que eles querem. Estão pressionando também por sua saída." Padilha ficou de queixo caído. Entendeu que quando FHC falava "eles", queria dizer o PSDB. Mas não é possível que, no meio dessa encrenca toda, o próprio Fernando Henrique esteja jogando mais lenha na fogueira, perguntou-se o ministro. A resposta é simples: quem não decide acaba transferindo a responsabilidade para outros; com isso, não só perde poder como gera mais crises.

A instabilidade causada pela indecisão do presidente está irritando até mesmo os canais mais moderados da República. Na terça-feira 6, o jornal O Estado de S. Paulo cobrou do presidente, em editorial, um gesto imediato de autoridade. "O dilema é inescapável: ou o presidente reorganiza amplamente o governo, infundindo-lhe o necessário sopro de grandeza, ou faz algumas substituições tópicas de auxiliares. Se optar pela primeira alternativa, merecerá o aplauso nacional. Se tender à segunda, melhor será que nada faça – para não agravar ainda mais a decepção dos brasileiros", argumentou o jornal. A Rede Globo de Televisão também abriu espaço nobre no Jornal Nacional para o presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, acusar: "Faltam ao presidente autoridade, comando, coordenação política e coragem. Ele não tem coragem de brigar com ninguém."

Mesmo com toda essa cobrança, Fernando Henrique não tem dado mostras de que abandonará o estilo ambíguo. Chegou ao fim de semana disposto a buscar saídas que não arranhem a sua autoridade, mas evitem um confronto aberto com ACM e a direção do PMDB. Por intermédio do porta-voz, Georges Lamaziére, o presidente fingiu que falava grosso. Disse que fará a reforma ministerial "se quiser, quando quiser e indicará quem quiser". Se não fizer uma ampla reforma para não ter de brigar com alguns aliados, corre o risco de perder outros. "Existe hoje um verdadeiro consenso no País sobre o governo – do jeito que está não pode continuar", adverte o senador Paulo Hartung (PSDB-ES). O presidente também quer evitar outro confronto. Na manhã da última sexta-feira, FHC reuniu a equipe econômica e pediu uma solução salomônica capaz de manter a Ford na Bahia com os incentivos que pretende ACM, mas sem parecer que cedeu ao cacique baiano. Proposta dos economistas de plantão: com a mesma caneta com que assinaria o veto à emenda aprovada no Congresso, FHC concederia privilégios à montadora multinacional por intermédio de outros instrumentos legais. Mas o líder do governo no Congresso, Arthur Virgílio Netto (PSDB-AM), anunciou outra alternativa: o presidente deixa de lado o veto e afirma seu poder na reforma ministerial que deverá ser anunciada na quarta-feira 14. Até podem ser soluções politicamente honrosas para ACM e Fernando Henrique. Terão, porém, um alto custo econômico. "Conceder incentivo que interfira no preço do produto é uma aberração. Isso é impensável e será predatório para a livre concorrência no mercado automobilístico", reagiu Mário Covas. E um custo político, pois o presidente não terá enfrentado ninguém. Fica no ar a mesma pergunta de sempre: afinal, quem manda no governo?

 

A misteriosa amiga argentina

A bateção de cabeça no governo é tamanha que nem mesmo o porta-voz da Presidência, Jorge Lamaziére, conseguiu explicar o que fez o presidente Fernando Henrique Cardoso na quinta-feira 1º ao passar quatro horas e meia no apartamento da argentina Alejandra Estela Herrera. Acompanhado do presidente da Anatel, Renato Guerreiro, e a mulher, Fernando Henrique surpreendeu os moradores da área econômica do setor sudoeste, bairro de classe média de Brasília, com uma inesperada visita ao Edifício Free Way. Em três anos de existência, a quadra jamais recebera visita tão ilustre, nem mesmo em campanha eleitoral.

A presença de FHC teria passado despercebida se não fosse a movimentação de seguranças. Ao todo foram oito carros que fecharam a rua e irritaram os moradores ao ocupar as vagas dos estacionamentos dos prédios vizinhos. O presidente chegou às 20h45 e subiu as escadas do primeiro andar (o prédio não tem elevador), onde a anfitriã o aguardava. A movimentação foi acompanhada por moradores curiosos que não desgrudaram da janela até a hora de o presidente sair, o que aconteceu só depois da meia-noite. A visita só foi interrompida por um serviço de bufê que entregou o jantar.

Alejandra Herrera é conhecida em Brasília como uma "alta técnica" da área de telecomunicações e presta assessoria para a Anatel. Seu padrinho político era o ministro das Comunicações, o falecido Sérgio Motta, que a trouxe para o Brasil por ocasião da ditadura argentina. Mais tarde, foi convidada para ser assessora especial no Ministério. Com o know-how da privatização das teles argentinas, Alejandra participou da elaboração da Lei Geral de Telecomunicações, aprovada em 1997, e da reestruturação do setor. Na Anatel, ela não conta com a simpatia dos colegas de trabalho. Causam inveja suas condições especiais de trabalho. Além de passar apenas uma semana por mês no Brasil é uma das técnicas mais bem remuneradas da agência. Embolsa R$ 11 mil e ainda ocupa um gabinete exclusivo no quinto andar da Anatel.

Isabela ABDALA