A verdade sempre aparece. Na semana passada, ISTOÉ revelou um quase-acidente com o jatinho que transportava do Rio de Janeiro para Brasília o ministro da Defesa, Waldir Pires. Foi na segunda-feira 13, em plena ebulição da crise na aviação nacional. O avião ocupado pelo ministro, um jato da FAB com matrícula 2718, estava em rota de colisão com um Airbus 320 da TAM que havia acabado de decolar da capital federal. Duas ordens, de emergência, evitaram o que poderia ser mais uma tragédia aérea. Em nota, o Comando da Aeronáutica acusou a reportagem de alarmista e negou enfaticamente o episódio. “Não é verdade a descrição”, sustentava o texto. Na verdade, o desmentido dos militares é que foi uma tentativa rasa de negar a realidade. As provas estão aqui (leia extrato ao lado). Relatório da própria Aeronáutica, produzido dentro do Centro Integrado de Controle de Tráfego Aéreo de Brasília, o Cindacta-1, relata em minúcias o que, no jargão da aviação, pode ser facilmente enquadrado como um quase-acidente. Ou “acidente iminente”, para usar palavras do documento.

O “Reporte de Incidentes nº 15/2006” foi produzido naquela mesma tarde de segunda-feira. São nove páginas. Como manda a norma aeronáutica, o documento traz a descrição de diferentes controladores que lidaram diretamente com a ocorrência – quatro, ao todo. Os relatos dão conta que o Learjet da Aeronáutica, com o ministro Pires a bordo, não cumpriu a rota programada inicialmente. A aeronave estava sendo controlada pelo sistema de defesa aérea, bem ao lado da sala onde funciona o controle do tráfego aéreo civil, responsável por orientar a rota do avião da TAM. O relatório revela que os controladores, na pressa, tiveram de desviar a rota do Airbus por duas vezes para tirá-lo do caminho do jatinho. Infelizmente, ocorrências deste tipo têm sido freqüentes. Na quinta-feira 23, o Jornal Nacional, da Rede Globo, mostrou documentos da Aeronáutica que indicam que nada menos que 22 colisões aéreas quase aconteceram nos céus brasileiros entre janeiro e julho deste ano. Duas semanas após o acidente entre o Boeing da Gol e o jato Legacy, outro Boeing da Gol e um Fokker da TAM quase se chocaram. O avião da Gol ia de Porto Alegre para o Rio e o da TAM seguia para Campinas. Segundo os documentos oficiais, as duas aeronaves passaram a 60 metros uma da outra.

No caso do quase-acidente com o jato em que viajava o ministro Pires, ele voltava de um compromisso oficial no Rio. O avião da TAM fazia o vôo 3875. Tinha acabado de decolar rumo a Florianópolis, com escala em Campinas (SP). Num trecho do relatório, o supervisor de plantão narra: “O controlador da hora, na região BR [Brasília], teve que vetorar [redirecionar] o TAM 3875 para evitar o tráfego do FAB 2718 e, mesmo assim, o COPM1 [sigla que define a divisão de defesa aérea] vetorou o FAB 2718 para o lado errado, jogando-o para cima do tráfego do TAM 3875”. A sucessão de erros prossegue. Embora o TAM já tivesse sido desviado uma vez, como a defesa aérea orientou o piloto do avião do ministro a manobrar para o lado errado, foi preciso mudar novamente a rota do Airbus. “O controlador (…) teve que revetorá-lo para evitar o tráfego do FAB 2718.” No meio tempo entre uma ordem e outra, o controle da aviação civil ainda tentou um contato telefônico com a defesa aérea para combinar o que fazer. Sem sucesso. A “linha quente”, exclusiva para esse tipo de urgência e acionada pelo apertar de um simples botão, estava ocupada. O controlador civil teve de decidir sozinho. Desviou o jato da TAM. Quando conseguiu falar com o colega da sala ao lado, descobriu que ele também havia mudado a rota do jatinho, “exatamente para cima do tráfego do TAM”, como consta do relatório. Os dois aviões estavam novamente em rota de colisão. A saída foi ordenar que o Airbus curvasse mais uma vez à esquerda. No fim das contas, o avião comercial praticamente deu meia-volta. Outro controlador chamado a relatar por escrito o que presenciou foi ainda mais incisivo. Escreveu que as manobras evitaram “o acidente iminente que se apresentava”.

Mesmo com as manobras de emergência para evitar a colisão, as duas aeronaves se cruzaram a uma distância de três milhas náuticas, algo em torno de 5,5 quilômetros, separação menor que a recomendada pelas normas da aviação. O episódio revela uma sucessão de problemas. Rota de colisão, dificuldade de comunicação, erros de controle. Foi por uma infeliz convergência de fatores semelhante a essa que aconteceu a tragédia com o vôo 1907 da Gol, em setembro. Em vez de arrefecer, a crise detonada pelo acidente só faz aumentar. E com ela vão aparecendo as fissuras do sistema. Em audiência no Senado na terça-feira 21, o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno, admitiu pela primeira vez que um erro do controle de tráfego aéreo pode ter contribuído para a tragédia da Gol. “Houve uma indução de que o avião estava no nível 360 [36 mil pés], tanto que ele [o controlador] passou para o substituto e passou para Manaus que o avião estava a 360. Ele não tinha sombra de dúvida de que o avião estava a 360”, disse o brigadeiro. Para começar a resolver a crise aérea, essa é uma boa rota: falar a verdade.