Ao ser convidado a deixar Belo Horizonte para trabalhar numa grande empresa em São Paulo, o economista F.M., 25 anos, achou, orgulhoso, que ia viver sua grande chance. Três meses depois, estava convencido de que era um irremediável fracasso. "Meu chefe ignorava a minha presença e meus projetos eram sistematicamente desqualificados", ele recorda. "Achei que eu não estava à altura da função." Deprimido, F. procurou um colega mais experiente e abriu o coração. O que ouviu foi uma surpresa. "Ele me garantiu que não havia nada de errado comigo. Há 15 anos na empresa e ocupando um cargo importante, ele ainda se sentia como eu." A frase fatal ainda estava por vir. "Ele me garantiu que todos, ali, viviam a mesma insegurança e ansiedade." Naquele momento, F. percebeu que a fonte de seu mal-estar era o ambiente. E, se o chefe jamais riu de suas piadas (ele só achava graça nas do diretor), era porque obedecia a um código local. No dia seguinte pediu demissão.

F. é uma exceção. Ele conseguiu escapar de uma situação que aprisiona milhões de profissionais em empresas de todo o mundo. Relações de trabalho que destroem o amor próprio são uma doença universal. A boa notícia é que agora isso tem nome – em português, assédio moral –, e estão começando a descobrir que a culpa é sempre do agressor, e não da vítima. Um livro lançado na França em setembro de 1998 está contribuindo enormemente para essa descoberta. Assédio moral – a violência perversa no cotidiano, da psiquiatra Marie-France Hirigoyen, há 43 semanas nas listas de best sellers francesas, já vendeu mais de 100 mil exemplares e está sendo traduzido em 15 países, entre eles o Brasil. Marie-France põe o dedo na ferida. "Assédio moral é toda ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência", explicou a autora, em entrevista a ISTOÉ. "Em geral são ações ambíguas, pouco claras, de tal forma que a vítima não possa afirmar que houve má intenção", diz. O objetivo do agressor pode ser livrar-se de alguém ou esmagar o amor próprio do outro para satisfazer a uma necessidade perversa. E mais: "Em geral, as pessoas são perseguidas por ter qualidades a mais e não a menos. Os indivíduos apagados não amedrontam ninguém. São as competências que despertam a inveja e a insegurança."

Marie-France notou que muitos dos pacientes que se queixavam de perseguição no trabalho eram indivíduos saudáveis em outras situações sociais. Juntando isso aos episódios que testemunhava como consultora de empresas, ela chegou às conclusões expostas na obra. Havia tocado a ponta do iceberg. O livro foi encomendado por países de culturas tão diversas quanto o Japão, a Coréia, os Estados Unidos e a Turquia e novos dados que começam a vir à tona sobre a questão. Na Grã-Bretanha, uma pesquisa da maior central sindical do país, que congrega 68 sindicatos e 6,9 milhões de trabalhadores, concluiu que 61% das queixas de stress no país devem-se a chefias incompetentes, assédio moral e pressão. Sha Fowkes, diretora da The Fowkes Clinic for Stress Management, de Londres, calcula que cerca de 45% dos seus clientes sofreram perseguição ou ameaças no trabalho. "Por isso, querem não apenas abandonar o emprego, mas também mudar de profissão. Perdem totalmente a autoconfiança." No Brasil, não há pesquisas específicas sobre o problema, mas os relatos de consultores de empresas, psiquiatras e psicólogos e, sobretudo, de trabalhadores de todos os escalões indicam que a situação não é diferente.

Humilhação O administrador de empresas Fernando de Paula, 28 anos, sofreu graves humilhações. Em 1997, ele trabalhava como gerente de contabilidade de uma indústria de transporte. Quando a empresa foi comprada por outra ele passou a responder a uma nova supervisora. Sua função era fazer balanços, mas a nova chefe tinha outros planos. "Como não podia me acusar de incompetente, encontrou um jeito de me agredir, dando-me tarefas que estavam abaixo da minha formação." Fernando foi encarregado de lidar com o jardineiro, de levar os carros para a oficina e da manutenção do telhado. "Eu até limpo o chão se me pedirem com jeito. Mas ela tinha um modo de falar que era humilhante." Soterrado por tarefas absurdas, ele não conseguia dar conta de sua real função, preparar os balanços. "No final, você se sente incompetente." Ao fim de sete meses, foi demitido. "O diretor de minha área, que ficava no Paraná e não sabia do que acontecia, achou que eu enrolava para fazer os balanços." Hoje, Fernando é gerente de contabilidade da Campari e o ambiente saudável ressalta o absurdo do que viveu. "Não gosto nem de lembrar."

O assédio moral não é exclusivo das empresas. Profissionais do meio acadêmico também acumulam um vasto repertório de sofrimentos. O professor A. A., da Unicamp, aprendeu o que é ser desmoralizado no trabalho. Por elaborar uma teoria que ia contra o que seus colegas de departamento pregavam, foi boicotado. Um opositor chamou os alunos de A. um por um e os advertiu de que aceitar aquelas teorias poderia prejudicá-los no futuro. "Não era uma agressão pessoal, mas ele ia abalando minha credibilidade." A. passou a ser visto com reservas dentro do departamento. Seus pedidos de bolsa foram recusados. "Eu fiquei tão deprimido com a rejeição que até pensei em deixar a carreira científica", admite. A boa aceitação de seus trabalhos no Exterior deu-lhe o respaldo que necessitava e ele conseguiu ir em frente, trabalhando em outro departamento.

O isolamento pode acontecer em grandes instituições ou em minúsculas empresas. Ao começar a trabalhar com oito pessoas num escritório de design gráfico, o estudante Tiago Marinho, 20 anos, sentiu-se subitamente só. "Eles formavam um grupo fechado e me boicotavam o tempo todo", lembra. Os sete colegas de Tiago ocupavam, juntos, uma das salas do escritório, enquanto ele trabalhava sozinho na outra. "Era uma sensação horrível. Eu passava o dia inteiro sozinho. Quando eu puxava conversa eles, respondiam secamente." Depois de um mês Tiago pediu as contas.

Diferente do assédio sexual, que só acontece de cima para baixo nas hierarquias, o assédio moral caminha em todas as direções. Mas, quando vem do alto, seu poder destrutivo cresce. O jornalista J. M., 28 anos, descreve o clima de medo que impera à sua volta. "Tive colegas, pais de família, que quando viam o carro do chefe no estacionamento da empresa corriam para experimentar a temperatura do capô e calcular há quanto tempo ele chegara. Se o carro ainda estava quente, comemoravam", conta. Pela mesma razão, muitos dos funcionários pedem às secretárias que liguem seus computadores de manhã cedo para dar a algum chefe madrugador a impressão de que já estão por lá. Ambientes opressivos como esse não são acidentais, mas resultam de ações propositais, que se legitimam numa cultura viciada. "Em processos de desenvolvimento gerencial ou em avaliações individuais dentro de empresas, muitos profissionais se abrem para o consultor, contando com seu sigilo. Eles admitem que manipulam conscientemente", relata Edwar Ghirelli Filho, da consultoria de recursos humanos Fator, de São Paulo. "Está no discurso deles: ‘Eu faço isso há muito tempo e sei que tem que ser assim, senão não dá certo. Eu sei o que estou fazendo.’" O elogio da eficiência a qualquer custo é outro artifício das culturas abusivas. "Muitos chefes confundem motivação com pressão e envolvimento com tensão", observa o consultor. E a esperança dos oprimidos de que um dia o opressor vá sofrer insuportáveis ferroadas de culpa é uma miragem. Como aponta Marie-France Hirigoyen, o perverso é imune a esse sentimento. Por isso mesmo, aquela cena do grande sofredor, de olheiras e rosto pálido, só serve para deixar o opressor mais feliz.

O perverso pode ser identificado por ações clássicas do seu perfil. "Eles jogam funcionários uns contra os outros. Chamam um subordinado e dizem: ‘Olha, fulano está se saindo melhor que você…’ ", descreve Ghirelli. Muitas vezes, estimulam conflitos entre chefes e subordinados. Em 1992, a crítica teatral e agente cultural Maria Lúcia Pereira foi vítima do assédio-sanduíche, imprensada entre dois escalões, na Secretaria Municipal de Cultura, em São Paulo. Na gestão de Luiza Erundina, Lúcia cuidava da destinação dos teatros de um centro cultural. Uma escriturária cuidava da burocracia da tarefa. Com a mudança de governo, frustrada por continuar sendo a subalterna, a auxiliar cruzou os braços, deixando a papelada se acumular, enquanto a direção fazia vista grossa. A guerra surda chegou até a mobília. As mesas foram rearranjadas para que Lúcia não alcançasse as máquinas de escrever. "Percebi que minha gastrite era produto daquela situação", lembra Lúcia.

 

Nuvem negra Uma das armas mais cruéis dos assediadores é a informação. Podem monopolizá-la de tal forma que os outros profissionais estejam aquém de seu potencial e só eles sabiam o segredo do cofre. A socióloga Elena Grosbaum e a historiadora Cristina Pereira da Silva foram vítimas de um chefe assim, que comandava um departamento de pesquisa de uma das maiores corporações financeiras do País. "Todos nós tínhamos um bom nível profissional, mas ele só nos passava informações picadas. Ele era o único autorizado a pensar", lembra Elena, com desgosto. A socióloga diz que o chefe era autoritário e tinha medo de perder o cargo. "Por isso, dava um jeito de demitir os mais competentes." Sua colega Cristina tinha pesadelos com ele. "Quando ele chegava, parecia que era uma nuvem negra, dava para cortar o ar com uma faca", diz a historiadora.

A psicanalista Carmen Molloy, de São Paulo, observa que ninguém está livre de lidar com a crueldade, ativa ou passivamente, em algum momento da vida, sobretudo, na profissional. "Nesse campo, espera-se que as relações sejam reguladas pelas competências, mas, quando entram em jogo representação social, imagem de potência e reconhecimento, abre-se um campo fértil para a rivalidade", descreve. Na raiz dessas pequenas tragédias do homem comum há pelo menos um sentimento compartilhado tanto pelos patifes do escritório quanto por suas vítimas: todos eles sentem medo. Temem, em última instância, perder seus lugares. "Até pouco tempo atrás, a maneira fundamental de o homem se representar socialmente era o trabalho", aponta o psicanalista Alfredo Nestor Jerusalinsky, de Porto Alegre. "Hoje isso está em crise", diz o psicanalista, que organizou um congresso para estudar o assunto no ano passado. À falta de outro reconhecimento social, as pessoas se agarram ao papel de profissionais.

Um estereótipo do tipo perverso-no-poder está na novela das oito da Rede Globo, Suave veneno, de Aguinaldo Silva. A personagem Maria Regina, interpretada por Letícia Spiller, humilha tanto seus subordinados que faz o sangue dos telespectadores ferver. O autor da novela não acredita que chefes de verdade possam ser tão maus, mas admite: "Existe hoje uma dose cavalar de maldade, que tem a ver com o individualismo exacerbado e com a ânsia de poder. Certas pessoas exercem o poder humilhando e espezinhando", diz Silva.

Vítimas de assédio não são as únicas pessoas interessadas em evitar que ele aconteça. A especialidade de alguns consultores é encontrar maneiras de sanear as relações de trabalho. Como lembra o consultor José Carlos Figueiredo, do Instituto de Psicologia Organizacional e autor de O ativo humano na era da globalização, a equipe é o patrimônio mais precioso de uma empresa. Quando está feliz, ela se torna mais criativa e trabalha melhor. Entre outras idéias para isso, ele sugere a existência de um ombudsman interno a quem os funcionários possam recorrer. Como constatou em sua experiência profissional, isso reduz bastante as ações cruéis. "Mas a empresa tem de estar disposta a resolver o problema, do contrário é inútil", ressalta. A infelicidade é um ralo financeiro concreto. Na Inglaterra, doenças do trabalho provocadas pelo assédio moral causam prejuízos equivalentes a R$ 24 bilhões por ano. Mas o dinheiro não é a maior perda que ele acarreta. O trabalho, hoje, tornou-se quase um privilégio. Vivê-lo com sofrimento é um duplo desperdício e reduz a vida a um drama de escritório.

 

Colaboraram: Angela Klinke (SP), Celina Côrtes (RJ) e João Fábio Caminoto (Londres).
Produção:
Luciane André

 

"A crueldade é evitável"

ISTOÉ – O sucesso de seu livro em tantos países, de culturas tão diferentes, é boa ou má notícia?
Marie-France Hirigoyen É uma pena, sem dúvida, que o problema seja tão universal, mas pode-se ler nessa repercussão uma maturidade das pessoas para perceber que o que lhes acontece não é justo e deve ser evitado.

ISTOÉ Se o assédio moral é tão universal, por que demorou tanto a ser nomeado e combatido?
Marie-France Porque ele só era mencionado no ambiente dos consultórios, em segredo. Além disso, o foco dos psicanalistas está no paciente, e não no universo do trabalho.

ISTOÉ – Suas conclusões se devem ao acúmulo de pacientes com queixas semelhantes ou a alguma outra circunstância?
Marie-France Ouvi muitas histórias parecidas, mas além do meu trabalho de consultório eu atuo como consultora dentro de empresas. Tenho uma observação muito próxima do que acontece nesse ambiente.

ISTOÉ – Mostrar ao assediador que o assédio provoca sofrimento diminuiria a incidência?
Marie-France Só aumentaria, porque o que ele deseja é provocar o sofrimento. Saber que conseguiu o deixaria muito feliz.

ISTOÉ – Nos países onde existe proteção legal contra o assédio moral ele diminuiu?
Marie-France Sim, mas não se sabe se por causa da legislação. O que acontece nesses países, como a Suécia, a Itália e os Estados Unidos, é que se tomam medidas para que a agressão não chegue a ocorrer. Mas raramente há punição do agressor. Em geral se prefere deslocar a vítima para outro setor.

ISTOÉ – A punição seria eficiente para reduzir o assédio moral?
Marie-France Certamente, porque imporia um limite ao indivíduo perverso. A impunidade o protege. Mas os indivíduos não são os únicos responsáveis pelas crueldades no trabalho. Também há sistemas propícios a esses comportamentos, que encaram os indivíduos como objetos descartáveis.

ISTOÉ – A mudança da era dos empregos para a era do trabalho pode estar agravando a crueldade nas relações profissionais?
Marie-France Perdemos o sentido do coletivo. Numa cultura individualista, a solidariedade encolhe, as pessoas sentem-se muito solitárias para poder reagir e ficam ainda mais indefesas.

ISTOÉ – Por que é tão difícil reagir?
Marie-France Em nossa cultura competitiva é preciso ser um vencedor a qualquer custo e as pessoas têm vergonha de admitir que são perseguidas. Temem ser confundidas com fracassados. E se culpam por ser perseguidos.

ISTOÉ – Culpa e vergonha de denunciar são reações semelhantes às das vítimas de assédio sexual. O que as duas situações têm em comum?
Marie-France As semelhanças limitam-se à ambiguidade e à vergonha de denunciar. Mas o assédio sexual é caracterizado pela hierarquia e o moral acontece em todos os níveis. Além disso, atinge igualmente os dois sexos e é muito mais frequente.

ISTOÉ – Homens e mulheres reagem de modo diferente ao tratamento cruel?
Marie-France As mulheres são mais numerosas nos consultórios. Mas os homens se matam mais.

ISTOÉ – O que será que vai acabar primeiro: as empresas ou a crueldade nas empresas?
Marie-France A crueldade não é uma fatalidade na vida profissional. Ela acontece porque se dá espaço a indivíduos perversos. Cabe aos dirigentes das empresas evitar que isso aconteça. E a todos nós ensinar as crianças a respeitar seus semelhantes.

 

Humor monitorado

 

A motivação dos funcionários é um dos segredos do sucesso da multinacional ISS Serv-sistem. Fundada na Dinamarca em 1901, a empresa, especializada em serviços como limpeza, manutenção e administração predial, emprega 200 mil pessoas em todo o mundo, dez mil no Brasil, onde opera há 26 anos. "No setor de serviços, funcionário satisfeito é sinônimo de cliente satisfeito", diz Eugenio Marianno, diretor-presidente no Brasil. Para zelar pela atmosfera necessária a seu bom funcionamento, a ISS mede regularmente o estado de espírito de seus limpadores espalhados pelas diversas empresas-clientes. Eles são solicitados a classificar numa escala de cinco alternativas (de muito insatisfeito a muito satisfeito) dezenas de aspectos como instalações, alimentação, equipamento, salário e o modo como são tratados. A soma dessas pesquisas constitui um precioso compêndio sobre a felicidade no emprego. "Em geral, o que deixa o funcionário mais contente é a maneira como é tratado", diz Roseli Pereira da Silva, coordenadora de treinamento. "As condições de trabalho – instalações, equipamentos, uniformes – também são valorizadas. O salário costuma entrar em quarto ou até em quinto lugar, na ordem das prioridades", ela informa. As pesquisas resultam em planos de ação para eliminar os motivos de queixa. Chefes autoritários, por exemplo, são encaminhados a treinamento. "Quem não consegue sai", admite Roseli. A recíproca do conceito satisfação do funcionário = satisfação do cliente é verdadeira. Em ambientes saturados de tensão e conflito, os limpadores da ISS não se sentem bem. Da mesma forma, apreciam o bom humor e o conforto à sua volta. "Na Souza Cruz no Rio, por exemplo, onde o banheiro dos faxineiros é de granito, igual ao do presidente, eles trabalham felicíssimos", cita Marianno.