O publicitário e jornalista Mauro Salles lança seu terceiro livro de poesias no qual há versos para a família e até para seus carros antigos

A vida do publicitário e jornalista Mauro Salles, nascido há 66 anos no Recife, daria um livro. Afinal, aos 28 anos já era ministro da Indústria e Comércio do governo João Goulart, aos 32 teve uma participação decisiva na fundação da Rede Globo e, aos 52, coordenou a vitoriosa campanha de Tancredo Neves à Presidência da República no Colégio Eleitoral. Apesar de hesitar em escrever a própria biografia, que se confunde com alguns episódios marcantes do Brasil, ele mais do que nunca tem se dedicado às letras. No ano que vem, deve lançar em parceria com o jornalista José Augusto Ribeiro Doutor Tancredo, um livro sobre o político mineiro que conheceu profundamente. Salles já lançou três livros de poesia. Coisas de criança, O gesto e, na semana passada, Recomeço (Objetiva, 136 págs., R$ 15). Atual presidente do Conselho da Salles/DMB&B Publicidade, sua carreira de poeta vem sendo aclamada por elogios de escritores tão díspares como o falecido Oto Lara Resende e Paulo Coelho.

Para espanto de alguns amigos tem sido, inclusive, visto com crescente frequência declamando poemas em saraus literários. Durante a entrevista para a ISTOÉ, ele declamou pelo menos uma dezena de seus versos e se emocionou ao ler a poesia que descreve o Natal organizado até hoje pela sua mãe no Rio de Janeiro. Coisas de criança, lançado em 1992, foi escrito com o propósito de ser distribuído na concorrida festa de Natal familiar, regada a pastéis de nata do Recife e sorvete de mangaba. Traz uma delicada visão do cotidiano infantil, dos primeiros brinquedos à puberdade, retratada por quem convive com três filhos e sete netos. São os netos que ele leva para passear nos finais de semana num bem conservado Chevrolet 1915, o único rodando no País, uma das peças mais raras de sua coleção de oito carros antigos, que também viraram tema de seus versos.

ISTOÉ – As pessoas se espantam quando descobrem que você é poeta. Quando é que você começou a escrever poesias?
Mauro Salles

Como era redator-chefe de O Globo, me auto-escalava quando havia entrevista com escritores. Fui amigo do poeta Augusto Frederico Schmidt, que era meu colega no jornal. Sempre fui pessoa da comunicação. O poema Serviço, que abre este livro, fala que juntar palavras sempre foi meu serviço. Eu comecei a escrever muito cedo, mas minha convivência com poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles me dava uma vergonha brutal do que eu escrevia. Então eu escondia meus versos. Mas aprendi muito com eles. O Drummond era extremamente cuidadoso e o Bandeira mais ainda. Depois vieram as lições do jornalismo e da publicidade que me ajudaram muito na poesia.

ISTOÉ – Mas um bom poeta não vai ser necessariamente um bom publicitário ou vice-versa.
Mauro Salles

 Certa vez o Rubem Braga estava precisando de um dinheiro e teve uma aventura como publicitário. Chegou na agência e foi fazer o texto de anúncio. Fez uma crônica linda, só que não cabia no espaço. Veio um redator de 20 anos, pegou a máquina de escrever, cortou uma palavra aqui, a outra ali, e o anúncio estava pronto, no tamanho certo. O Rubem pegou o paletó e foi embora. Mas não sei se os redatores da minha agência são bons poetas.
 

ISTOÉ – Qual a sensação quando você termina um poema?
Mauro Salles

 Às vezes é de estranheza, de susto. Meu filho Paulo era muito amigo do Ayrton Senna. Foi kartista junto com ele. Vimos o Ayrton crescer. Também fui presidente da Confederação Brasileira de Automobilismo. Minha relação com ele era muito estreita. Nas vésperas daquele fatídico Grande Prêmio de Imola, quando ele morreu, não sei explicar por que escrevi um poema chamado O vôo (publicado em Recomeço). Escrevi e botei na gaveta como os outros. Dias depois, vi na televisão umas cenas do treino daquele Grande Prêmio e o Ayrton estava no box, em pé, atrás do carro, sozinho, com uma cara diferente. Virei para meu filho e disse, que rosto estranho esse do Ayrton. Depois ele morreu e nem me senti com força para ir ao velório. Dez dias depois estou mexendo nas minhas coisas e vejo o poema. É a descrição da morte dele.
 

ISTOÉ – De um modo geral seus versos são melancólicos.
Mauro Salles

 Sou o poeta da melancolia sim, mas também sou o poeta da esperança e da vida. E não tem nada que seja mais vida do que o amor. O amor não é apenas a relação entre duas pessoas. Tenho o amor como uma proposta de vida. Em qualquer campo eu só sei agir com paixão. O Drummond, por exemplo, fazia uma poesia sensual e pornográfica também. Eu não sei fazer a pornográfica. Quer dizer faço, mas é contra minha maneira de ser. Faço para jogar fora.
 

ISTOÉ – As pessoas ainda se interessam por poemas?
Mauro Salles

Acho que sim. Está se gravando para burro CDs de poemas lidos. Há um mês, o Paulo Autran lançou o CD dele lendo poemas e vendeu 300 exemplares em duas horas. Eu encontrei com ele no dia seguinte e me disse que havia feito um livro sobre sua vida de artista, lindíssimo, com uma noite de autógrafos altamente produzida e autografou menos do que nos CDs. No Rio, tem um grupo de promoção da poesia, do Pedro Bial. Num determinado dia da semana, naqueles botecos da juventude, em vez de rock tem poesia. Fica gente de pé para escutar. Tem muita gente de talento escrevendo.
 

ISTOÉ – Você viveu nos anos 60 e 70, numa época efervescente do mundo e frequentava redutos da contracultura. Já experimentou drogas?
Mauro Salles

 Nem maconha fumei, embora tenha sido até repórter de polícia. Mas antes, a droga estava associada a uma certa elite da arte. Hoje está esculhambada. O chique está sendo ser careta. Vi a capa de uma revista brasileira em que garotas estavam brandindo a virgindade. Nos anos 70, essas mesmas garotas estariam queimando seus sutiãs.

ISTOÉ – Como você se tornou publicitário?
Mauro Salles

Eu vinha acumulado as direções de jornalismo e programação na Rede Globo, mas tinha 30 e poucos anos e quis arriscar. Propus ao Roberto Marinho ser sócio da emissora como o único jeito de continuar lá. Ele perguntou se eu estava louco. Na mesma ocasião, ainda em função de uma coluna sobre automóveis que eu mantinha em O Globo, fui conhecer o novo Aero-Willis luxo. Cheguei lá e, como era muito palpiteiro, disse para os americanos que a estratégia de lançamento estava toda errada. Pedi uma semana para fazer um projeto com a condição de que, se fosse aprovado, criaria uma agência de propaganda com a conta da Willis, uma das cinco maiores do País.
 

ISTOÉ – E qual foi sua estratégia?
Mauro Salles

 Fui atrás do Ibrahim Sued e disse que iria lançar um carro junto com a festa anual das dez mais elegantes. Naquela altura já tinha batizado o carro de Itamaraty. Avisei a diretoria da Willis que os caras que iriam aparecer na festa eram do soçaite. A direção da Willis – com exceção do presidente – ia ficar na mesa do fundo porque eles eram muito feios, tudo americano grande, de pé grande. E falei para eles, depois da festa, fazerem um plano para vender 500 carros por mês em vez de 300 e que o Itamaraty em vez de custar 15% mais caro que o Aero-Willis custaria 25% mais caro. Eles gostaram e falaram: te damos a conta do Itamaraty. Eu peguei a pasta com o projeto do lançamento e falei, fica de presente, não custa nada. Ou eu levo a conta de todos os carros da Willis ou eu serei apenas um convidado da festa. Foi assim que eu fiz minha agência. Com uma capacidade de blefar que só quem tem 30 anos pode ter. Montei a agência no hotel Jaraguá. A agência primeiro se chamava Mauro Salles Publicidade, mas depois ficou Salles porque eu não gostava do artigo feminino. Era um tal de as pessoas dizerem é da Mauro, vou na Mauro…
 

ISTOÉ – E o Roberto Marinho ficou chateado com sua saída da Rede Globo?
Mauro Salles

 Cada vez que eu aparecia na Globo ele dizia que só ia se convencer do meu negócio se um dia a Salles fosse a agência de maior faturamento do País. Esse dia chegou e me avisaram. Eu fui falar com ele. "Dr. Roberto, lembra daquele acordo de que o senhor só ia me perdoar quando eu fosse a agência de maior faturamento. Pois bem, tenho a impressão de que consegui." Ele consultou seus assessores, chamou seus irmãos na sala e armou um cenário. Quando teve certeza de que era verdade, olhou para mim e disse: Mauro, minha impressão é que dava para você fazer isso muito antes.
 

ISTOÉ – Como você vê a atual queda da audiência da Rede Globo?
Mauro Salles

A quantidade de oferta se ampliou muito. Há os canais a cabo, mais cinco milhões de videocassetes, videogames, computadores. Tanto que hoje não se falam em horas de televisão, mas em horas de tela, que é ocupada por outras coisas. Nos Estados Unidos as três redes, CBS, NBC e ABC, continuam líderes só que com uma audiência menor devido à segmentação. Hoje, o sujeito diz que a novela tal está dando 40 de ibope, enquanto a média do horário era de 50, e já se pensa que a dona Marluce (Dias da Silva, superintendente executiva da Globo) está arrancando os cabelos. Que nada, ela está rindo. As pessoas se esquecem que a competição real da televisão não é feita por quem ganhou a audiência do domingo. A responsabilidade é do dia todo, onde o domínio da Globo é avassalador.
 

ISTOÉ – E essa guinada da Globo para uma programação mais popular, até mesmo popularesca?
Mauro Salles

Não sei se é tão verdade. Popular sim, popularesca nem sempre, embora às vezes a Globo tenha descarrilado. Para eles, no início, fazer um telejornal popular foi um choque, hoje não é mais. Perceberam que contar uma boa história, por exemplo, do nascimento do filho da girafa, merece mais espaço do que um depoimento do deputado Inocêncio Oliveira. Fiz um estágio na BBC de Londres e a regra lá era a seguinte: quando não tiver assunto, deve-se apelar para duas coisas, bicho e criança, já que a terceira, que é mulher insinuante, não podia na BBC. A Globo descobriu que jornalismo de televisão é show.
 

ISTOÉ – E o crescimento da Rede Record?
Mauro Salles

Eles estão fazendo um monte de coisas certas, mas ainda estão muito longe da Globo. Minha grande surpresa é o Silvio Santos. Em vez de ter avançado em ser uma alternativa de audiência para a Globo, resolveu brigar com a Record e ficar feliz em ser o número 2. É difícil querer ser o número 2 se às vezes nem o número 1 resiste. O tema do número 1, por exemplo, foi importante para a cerveja Brahma num determinado momento. Depois os ventos do marketing recomendaram outros caminhos e a agência do Eduardo Fischer, a meu ver, custou a entender isso. Talvez essa tenha sido a razão de a conta ter mudado de ares, apesar dos muitos prêmios que a campanha recebeu.
 

ISTOÉ – Quer dizer que não dá para só pensar em ganhar prêmios?
Mauro Salles

Prêmio massageia o ego de todo mundo, mas não pode ser um meio. Teve uma campanha de uma marca de malas e bolsas nos Estados Unidos com coisas lindas, maravilhosas, talentosíssimas que venceu todos os prêmios. O cliente fez até uma festa para homenagear a agência. Mas os resultados da campanha não foram os esperados e a empresa demitiu a agência. Na Salles DM&B, fazemos comerciais de brilho, que podem ser exibidos no mundo inteiro, mas o principal objetivo é vender uma idéia.
 

ISTOÉ – Você ainda cria anúncios?
Mauro Salles

 Sempre fui criador da idéia, da estratégia, nunca fui um bom criador de anúncios. O pessoal na agência se diverte muito rejeitando meus anúncios.
 

ISTOÉ – Fotografia, jornalismo, advocacia, publicidade, poesia e política. Qual destas atividades pesa mais na sua vida?
Mauro Salles

 Sou permanentemente insatisfeito comigo mesmo. Gostaria hoje de escolher a profissão de escritor. Tanto que eu e o jornalista José Augusto Ribeiro estamos fazendo um livro, Doutor Tancredo. Vamos contar a história do Brasil que o Tancredo Neves participou ou assistiu.
 

ISTOÉ – A marca de Tancredo Neves era mesmo a astúcia?
Mauro Salles

Há vários casos que mostram bem isso. O Paulo Maluf, que concorria com ele à Presidência no Colégio Eleitoral, vivia dizendo que o Tancredo, na verdade, nunca quis eleições diretas. Num café da manhã, ele se irritou com estas declarações e resmungou. "Um dia ainda convido o Maluf para subir a rampa do Palácio do Planalto comigo para pedirmos juntos as diretas para o (João Baptista) Figueiredo." Eu achei a idéia maravilhosa e fiquei esperando a hora que ele ia falar isso para os jornalistas. Passou um dia, dois, três e ele não falava. Até que numa entrevista coletiva lhe contaram mais uma vez das críticas do Maluf. Ele virou-se para todos e como se fosse de improviso repetiu exatamente o que dias antes havia resmungado. Todo mundo pensou que havia sido uma idéia espontânea, criada na hora. O Maluf nunca mais o provocou.

ISTOÉ – Quais eram as outras virtudes políticas de Tancredo?
Mauro Salles

Ele tinha uma paciência incrível para ouvir. Um dia, veio um sujeito esbaforido no comitê eleitoral em Brasília para contar uma novidade urgente. Tancredo ouviu e o sujeito foi embora. Depois veio outro com a mesma história. E assim, foram ao todo cinco pessoas contando exatamente a mesma coisa. Para cada um ele fazia cara de que não sabia de nada, que estava ouvindo aquilo pela primeira vez. Eu é que não aguentei e cheguei para o Tancredo e perguntei: "O senhor não está cansado de saber dessa história?" Ele me disse: "Mauro, você acha que eu ia dar a entender a essas pessoas, que vieram do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, que o que elas vieram me dizer não era importante?"
 

ISTOÉ – Qual sua avaliação do governo Fernando Henrique Cardoso?
Mauro Salles

 É uma pena que as paixões políticas tendem a ofuscar a grande obra do estadista que, com o Plano Real, virou a página da inflação, abriu o caminho da estabilidade da moeda e construiu uma base para a modernização do País. O Brasil foi atacado pelo vendaval dos capitais virtuais, mas o povo ajudou o governo a barrar a volta da inflação, a rejeitar a recessão mesmo com a desvalorização do real. A grande vítima acabou sendo a imagem do presidente, mas ele é um determinado, não vai sair da sua rota. O povo, que é sempre justo, vai fazer uma grande revisão política e rever seu julgamento. As pesquisas já detectam essa tendência.