Enquanto o juiz Turgut Okyay lia o veredicto, o líder da guerrilha curda Abdullah Öcalan permanecia impassível dentro de um cubículo blindado transparente no Tribunal de Segurança do Estado da Turquia, na ilha-prisão de Imrali. Fora do recinto, soldados do Exército montavam guarda naquela manhã da terça-feira 29, ao mesmo tempo que a polícia mantinha prontidão em todo o país para evitar sequestros de aviões ou ataques a embaixadas. "A corte sentencia o suspeito Abdullah Öcalan à morte por enforcamento, de acordo com o artigo 125 do Código Penal da Turquia", disse Okyay, que integra um triunvirado de juízes – um deles militar – do tribunal. "Entendemos que ele agiu no sentido de tentar separar porções do território sob a soberania do Estado turco liderando a organização terrorista armada Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Essas ações levaram à morte milhares de inocentes – entre eles bebês, crianças, mulheres e idosos", completou. Öcalan não esboçou nenhuma reação. Já os familiares das vítimas da guerrilha curda irromperam em gritos de entusiasmo no tribunal, desfraldando bandeiras turcas e entoando o hino nacional da Turquia.

A decisão da corte foi recebida com euforia em todo o país. Manifestações de júbilo ocorreram em muitas cidades, revelando um forte apoio da opinião pública turca à execução daquele que já foi o "Inimigo número 1" do Estado. Já os protestos ocorreram apenas na Europa, onde vivem centenas de milhares de emigrados curdos. Desta vez, a reação dos curdos exilados não foi tão violenta quanto à época da prisão de Öcalan. Mesmo assim, na quarta-feira 30 desconhecidos incendiaram propriedades turcas em várias cidades da Alemanha, onde vivem 500 mil dos dois milhões de curdos na diáspora. Na Turquia, ataques de rebeldes curdos mataram cinco pessoas. Os países da União Européia (UE), um clube em que a Turquia tenta entrar há anos, sem sucesso, chiaram contra a sentença. "Isso vai aumentar ainda mais a distância entre a Turquia e a Europa", resumiu no Rio de Janeiro o premiê italiano, Massimo D’Alema. Criticada pela péssima folha corrida em matéria de direitos humanos, nos últimos anos a Turquia vem tentando contemporizar. Assim, uma moratória informal fez com que nenhum dos 130 condenados à morte desde 1985 tenha sido executado.

Mesmo que venha a ser cumprida, a sentença contra Öcalan ainda terá que percorrer um longo e tortuoso caminho, que poderá se arrastar por meses a fio. A Corte de Apelações – uma espécie de Corte Suprema – poderá confirmá-la ou pedir um novo julgamento. Se mantida a sentença, a decisão passará pela Comissão de Justiça do Parlamento e, na sequência, pelo plenário. Se este ratificar a pena de morte, a palavra final ficará com o presidente Suleiman Demirel. A maioria dos analistas acredita que o governo turco está esticando a corda para obter mais concessões do líder curdo. Durante o julgamento, ele admitiu a responsabilidade pelas ações terroristas de que o PKK é acusado e se ofereceu para atuar como mediador em troca de se livrar da forca. "É tempo de terminar esse conflito. Quero dedicar minha vida a possibilitar que turcos e curdos vivam juntos", disse.

Filho de camponeses pobres, Öcalan, 50 anos, fundou o PKK em 1979, quando era estudante em Ancara (capital da Turquia). Formado como uma organização marxista-leninista, o PKK se lançou em 1984 à luta armada para obter independência do Curdistão (mapa). O golpe militar direitista de 1980 obrigou Öcalan a deixar a Turquia e buscar asilo na Síria, onde montou o QG de seu exército rebelde. Sob forte pressão do governo turco, a Síria expulsou o líder rebelde no final do ano passado. Apo (tio em turco), como é conhecido, perambulou por vários países europeus até ser sequestrado por um comando turco em 15 de fevereiro último, em Nairóbi, no Quênia. Desde o início da insurreição do PKK contra a Turquia, mais de 37 mil pessoas morreram, a maioria civis e guerrilheiros.

 

Ficou o medo

O culto aos heróis é mais forte onde a liberdade é menos considerada", ensinava o filósofo inglês Herbert Spencer. A se crer nele, os curdos ficaram órfãos. Abdullah Öcalan abjurou de tal maneira a luta de sua organização que só faltou pedir desculpas ao governo turco por sua opção política. Mais do que cálculo, a atitude de "Apo" revelou que ele está preocupado, acima de tudo, em salvar a própria pele. Demasiado humano, mas no passado líderes políticos não costumavam ser feitos da mesma matéria que os comuns mortais.

Tempos atrás, um comportamento que Öcalan certamente acharia temerário desmontou uma gigantesca farsa montada pelo nazismo em seus primórdios. O governo nazista acusara os comunistas de terem incendiado o edifício do Reichstag (Parlamento) em 27 de fevereiro de 1933 para provocar um golpe de Estado. Fazendo sua própria defesa no tribunal de Leipzig, o comunista búlgaro George Dimítrov (foto), um dos cinco acusados, não se satisfez em provar sua inocência: atacou a corte, a polícia, o Partido Nazista, a imprensa. Humilhou o poderoso Hermann Göring, que se retirou aos berros. Assim, o réu virou acusador e convenceu a opinião pública internacional de que o incêndio tinha sido provocado pelos nazistas como pretexto para acabar de vez com o que restava da democracia na Alemanha. Dimítrov e outros três réus foram absolvidos e o único condenado, Marinus van der Lubbe, foi o solitário incendiário cuja loucura foi aproveitada por Hitler et caterva.

O dramaturgo alemão Bertolt Brecht achava infeliz o povo que tinha necessidade de heróis. O infeliz povo curdo não tem mais heróis. Apenas medo.

Cláudio Camargo