A pose para a fotografia parece surreal: Marcel Herrmann Telles, presidente do conselho de administração da Brahma, segura feliz da vida uma latinha de Antarctica Pilsen, e Victorio De Marchi, diretor-geral da Antarctica, brinda sorridente com uma Brahma Chopp. A essa altura, o mercado continuava embasbacado. Afinal, a briga, que já durava um século, costumava ser feia. No verão de 1994, por exemplo, as duas cervejarias decidiram que uma iria aniquilar a outra. Começou uma guerra de preços suicida, prudentemente suspensa em um mês, depois de constatado o bom fôlego de ambas. As perdas chegaram a R$ 150 milhões de cada lado. Mas as farpas que tanto alimentaram a mídia e ganharam o apelido de "guerra das cervejas" estão no passado: Brahma e Antarctica anunciaram na quinta-feira 1º a surpreendente fusão, que cria uma nova empresa, a AmBev – American Beverage Company, ou Companhia de Bebidas das Américas, ou ainda Compañía de Bebidas de las Américas, dependendo de em qual idioma for vender seus produtos. A idéia é criar uma companhia com porte suficiente para defender terreno no Brasil e disputar o mercado internacional. Os executivos comunicaram o acordo ao presidente Fernando Henrique Cardoso e foram bem recebidos. Segundo FHC, que adota a estratégia de fortalecer setores nacionais para que se tornem competidores globais, antes a união do que a venda de uma delas.

"Em algum momento viria uma oferta para uma das duas empresas. Para os estrangeiros, é muito barato comprar companhias no Brasil", admite Telles. A situação da Antarctica era mais complicada, apesar de a empresa estar ajustando suas finanças há um ano, com a ajuda do Bradesco. A dívida é de R$ 1,2 bilhão, pouco maior do que a da Brahma, de R$ 923 milhões. "Mas é preciso fazer a relação da dívida com o fluxo de caixa", adverte o analista de bebidas do Banco Fator, Guilherme Pântano. O caixa da Brahma é de R$ 700 milhões, enquanto o da Antarctica é de R$ 300 milhões. No ano passado, a Antarctica também teve um lucro líquido muito menor do que o da Brahma – R$ 64,2 milhões contra R$ 329,1 milhões –, apesar de as duas fabricantes terem praticamente os mesmos ativos e o mesmo patrimônio líquido. Mas a Brahma também era alvo. Já não há muito espaço para que ela continue multiplicando seus lucros, como faz há dez anos, desde que os então sócios do Banco Garantia, liderados por Jorge Paulo Lemann, compraram a companhia. A venda seria inevitável, antes da curva descendente.

Somadas, Brahma (incluindo Skol) e Antarctica formam a maior empresa privada brasileira: faturamento de R$ 10,3 bilhões – R$ 7 bilhões da Brahma –, lucro de R$ 393,3 milhões, valor de mercado de R$ 7,5 bilhões (leia quadro ao lado). No ranking mundial de produção, a AmBev ocupará um vantajoso terceiro lugar, atrás apenas da gigante americana Anheuser-Busch, fabricante da Budweiser, e da holandesa Heineken. Com a associação, deve haver enxugamento nos quadros administrativos e algumas fábricas podem ser fechadas. Os varejistas não devem se preocupar com imposições de preços, garantem os comandantes da AmBev. As estruturas de marketing e vendas serão separadas para Antarctica, Brahma e Skol, e a concorrência será para valer entre as marcas. Mas os fornecedores estão apreensivos. "O poder desse pessoal deverá aumentar", afirma o novo presidente da fabricante de embalagens de alumínio Latasa, José Carlos Martins. A Latasa vende mais de 50% de sua produção para Brahma e Antarctica. Mas o executivo prefere ver o negócio pelo lado positivo. "A tendência da AmBev é crescer e, consequentemente, crescerá junto com seus fornecedores."

Embora todos prometam uma gestão compartilhada, com Telles e De Marchi à frente, fica evidente que o poder da Brahma deve prevalecer. A diferença começa pelo bolso. Os controladores da Brahma terão 46% das ações ordinárias (com direito a voto) e os da Antarctica, 23%. Para o mercado, é a primeira engolindo a segunda. A comprovação está logo abaixo dos principais executivos. Magim Rodriguez Júnior, diretor superintendente da Brahma, tocará a operação – sem a contrapartida de um executivo da Antarctica. Para a Brahma, uma das grandes vantagens é incorporar o unânime guaraná da ex-rival. No início do ano, a Antarctica tinha quase 11% do mercado de refrigerantes do País, 6,5% apenas com o guaraná. No último bimestre auditado pela Nielsen, entretanto, as marcas das duas empresas davam sinais de enfraquecimento. No setor de cervejas, queda de quase um ponto, enquanto Kaiser, Schincariol e outras menores subiam. Tudo isso em um cenário de queda de 11% nas vendas totais de cerveja, entre janeiro e maio. Como o mercado interno anda com o pé no freio, a AmBev nasce voltada para o cenário internacional – e até promete aquisições. A Brahma andava esbarrando nos preços pedidos pelos vendedores, o que piorou depois da desvalorização cambial. "No início do ano, estávamos com uma compra nas mãos, e de repente nos deparamos com a necessidade de ter R$ 1 bilhão a mais para fechar o negócio", conta Magim. Segundo fontes do mercado, a companhia esteve perto de comprar o grupo Santo Domingo, na Colômbia, a cervejaria Polar, na Venezuela, e a engarrafadora Baesa, na Argentina, além de sonhar com a cervejaria Quilmes, também argentina. Qual é o negócio? "Não conto", diz o executivo. "Até porque vamos tentar fechar de novo." E também partir para uma filial nos Estados Unidos.

 

Donos do mercado A reação dos investidores foi de euforia. Quando as ações das fabricantes voltaram ao pregão na sexta-feira à tarde, depois de um dia e meio suspensas, a cotação dos papéis mais negociados subiu 15%. A concretização da AmBev, no entanto, depende da aprovação do governo. A empresa detém 71,6% do mercado de cervejas. Regionalmente, a concentração é mais gritante em algumas praças: 80% no Rio e 94% no Ceará. No mercado total de bebidas no Brasil, que inclui refrigerantes, a parcela é de 39%, pelo critério de litros vendidos. Mas vale a pena olhar pelo ângulo que a Brahma tanto gosta, o share de valor, que mede quanto dinheiro uma empresa faturou do mercado. Preço baixo pode garantir mais litros vendidos, mas representa menos dinheiro em caixa. Em grana, a AmBev teria 75,4% do total de cervejas no bimestre abril/maio. Esses quatro pontos de diferença, em um mercado de R$ 9 bilhões, representam R$ 360 milhões.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O titular da Secretaria de Direito Econômico, Ruy Coutinho, deu indícios de aprovação. Mas a palavra final é do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Tanto Antarctica, no acordo com Anheuser-Busch, quanto Brahma, no acordo com a americana Miller, têm experiência nessa história. A Brahma, por exemplo, foi tocando normalmente a parceria enquanto o Cade fazia sua análise. No final, a autarquia liberou o acordo com as ressalvas de que a Brahma produzisse e transferisse tecnologia a pequenas e microcervejarias. As parcerias com as americanas, segundo a AmBev, foram desfeitas. A Anheuser-Busch divulgou que já procura outro parceiro latino-americano, que poderia ser a nada satisfeita Kaiser. A cervejaria soltou um comunicado repudiando a "possibilidade de se restringir a livre concorrência".

 

Penetras na festa O negócio começou a ser desenhado há um mês, em um almoço entre De Marchi e Telles. Além deles, somente outros quatro diretores sabiam da proposta. Uma sala do GP Investimentos, de Jorge Paulo Lemann, Telles e outros sócios, foi destinada aos trabalhos. As empresas apresentaram seus números ao banco Morgan Stanley, que confirmou que o negócio era viável. Uma equipe de uma dúzia de advogados foi acionada, e mais tarde o publicitário Mauro Salles se uniu ao projeto para cuidar da política de comunicação. A divulgação estava marcada para o dia 7 de julho, mas a informação vazou. Na quarta-feira 30, antes de suspensos os negócios com as ações das companhias envolvidas, os papéis de Antarctica e Brahma tiveram uma alta anormal. De acordo com operadores de mercado, desconfia-se que a Fundação Cesp, fundo dos funcionários da Cesp, operou 90% do volume de papéis da Antarctica no dia. Haveria fortes indícios de manipulação. Tsssssss.

Colaborou André Vieira (SP)


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias