“Assim que acabou a missa da noite, fomos para a sacristia. Ficava a poucos metros do altar, onde deixávamos os objetos do culto e as oferendas. De repente, o Jaime trancou a porta. Arrastou-me com força. Despiu-me rasgando meu vestido. Ele, então, lançou-me sobre a mesa jogando no chão os castiçais, o cálice e até a Bíblia; rompeu os botões de sua batina e fez sexo comigo. Estávamos juntos há cinco anos, mas aquele foi o momento mais profano. Eu não queria, mas não consegui me desvencilhar de seus braços. Com o corpo dele sobre o meu, apenas mirei uma grande imagem de Jesus, ladeada a uma foto do arcebispo de Pernambuco, pregada na parede branca. Rezei. Implorava para que aquele inferno terminasse. Jaime uivava. Depois, me largou em prantos. Pedi perdão a Cristo. Aquela, defnitivamente, não era a vida que eu pedira a Deus.”

Todo santo dia, a pernambucana Renilda Maria da Silveira, 42 anos, dedica parte de sua vida a escrever a respeito de um pecado que ela jura não ter cometido. Depois de três anos vivendo sob o mesmo teto com Jaime Alves de Melo, ela descobriu que seu companheiro, na verdade, era um padre católico. A primeira reação de Renilda foi de fúria e ódio. Imediatamente, ela resolveu denunciá-lo à Igreja. A Cúria exigiu que Renilda tivesse provas concretas de que o padre tivesse tido, no jargão da instituição, “uma má conduta sexual”. Corria o ano de 2001. Para provar o que dizia, Renilda resolveu arquivar sua ira, continuou sua relação com Jaime por mais três anos e, nesse tempo, montou um assombroso pacote de provas para pedir a excomunhão da Igreja Católica de seu “marido”. Nesse período, juntou filmes, fotografias e gravações de suas relações íntimas e familiares com o padre Jaime. Foi fria e calculista. Freqüentou praia de nudismo, participou, a convite dele, conforme conta, de orgias, realizou o ato sexual na sacristia da paróquia da Assunção de Maria, em Olinda (conforme descreve no relato que inicia esta reportagem), e também na casa paroquial. Ela quer provar que, além de mentir para ela, quando não assumiu sua condição de padre, Jaime, ao abrir o jogo, passou a ser perverso e absolutamente profano.

Todo esse escândalo, tratado até aqui como segredo de confessionário pela cúpula da Igreja pernambucana, ganhou as ruas, altares e os tribunais. Há 15 dias, Renilda entrou na Justiça dos homens com um processo de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato. Traduzindo, o fim do casamento, na prática, com o padre. O processo nº 043730-9, que tramita em segredo de Justiça na 8ª Vara de Família no Fórum de Recife, é o único do tipo de que se tem notícia no Brasil. “Não tive opção. Eu me submeti a viver como uma escrava sexual e uma refém para que eu pudesse desmascará-lo”, diz. “Vou conseguir”, garante.

Batalha judicial

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Noutra frente, Renilda está pelejando dentro da Igreja. Em 2004, três anos depois de suas primeiras denúncias, o arcebispo Metropolitano de Olinda e Recife dom José Cardoso afastou o sacerdote Jaime de sua Arquidiocese. Proibiu-o até de usar batina ou “qualquer outro distintivo clerical”, conforme determinação de um decreto assinado pelo arcebispo José em 22 de setembro daquele ano. Porém, em razão de ações que só a Justiça divina é capaz de explicar, o padre Jaime conseguiu, com a autorização de outra arquidiocese, continuar celebrando. Hoje, ele é padre na cidade de Inajá, interior de Pernambuco, reza missas, entrega hóstias e ouve confissões. “De fato ele teve um problema, mas a Igreja prevê o arrependimento e nós demos a ele essa oportunidade”, disse a ISTOÉ dom Adriano Ciocca Vasino, bispo responsável pela região em que Jaime atua, a de Floresta, no interior de Pernambuco. Renilda sente revolta ao saber que Jaime tem poderes para ouvir confissões. “Em Olinda, soube que ele seduziu muitas mulheres a partir do momento em que conheceu os seus segredos”, diz Renilda, que fora secretária da paróquia em que Jaime atuava.

O caso do padre Jaime é emblemático de uma situação que, muitas vezes, incomoda os padres, mas que ainda é um dogma católico: o celibato. Pesquisas internas da Igreja Católica apontam que 5.500 padres brasileiros, ou seja, 32% deles, desobedecem ao voto de castidade que o celibato implica. No resto do mundo, esse número chega à casa dos 150 mil religiosos. O problema da vida amorosa do clérigo católico bate cada vez com mais força às portas da Santa Sé, no Vaticano. Na quinta-feira 16, em reunião inédita, o papa Bento XVI encontrou-se com 20 chefes de departamentos do Vaticano para decidir sobre o tema. O resultado foi a ratificação da tradição católica, instalada a partir do distante ano de 1139. Em resposta, os ex-padres católicos que vivem ao lado de suas mulheres, defensores da modernização da Igreja, marcaram para os dias 8 a 10 de dezembro uma megamanifestação – com as respectivas esposas – em Nova York, para chamar a atenção do mundo para o problema.

Enquanto isso, aqui no Brasil, Renilda ainda vai sendo tratada como uma herege. Sua mãe, num primeiro momento, a renegou. Uma mulher de rígida moral católica, afinal, não poderia conviver com uma filha casada com o padre. Devota de Santo Antônio, Renilda caiu em desgraça e parou de freqüentar missas. Hoje, vive à base de doses cavalares de calmantes e, ainda por cima, como nos tempos da Inquisição, é acusada de “pecadora” nas ruas do Recife. “Eu nunca pude imaginar uma coisa dessa”, disse ela a ISTOÉ.

A história de Jaime e Renilda começa em 1998. Aos 38 anos, ela era uma líder comunitária que começava a despontar no Recife e ele, nove anos mais novo, um suposto estudante e representante comercial muito interessado em cidadania e na defesa das causas populares. Nascido em Garanhuns, no agreste pernambucano, em 1972, Jaime tinha tudo do namorado chamado bom partido. Bonito, bom de conversa, formado em psicologia e filosofia, o jovem não demorou muito para conquistar a militante comunitária Renilda – que já era mãe de uma filha –, pessoa de perfil guerreiro, mas frágil e carente. “Diante das pessoas da comunidade, eu não podia chorar, eu tinha que ser a Renilda corajosa e forte. Com o Jaime não, eu pude mostrar meu lado frágil, meu lado decepcionada. Hoje, eu percebo, ele soube explorar minhas fraquezas”, admite. Um ano depois de se conhecerem, ela não resistiu a um rosário de palavras que fazem bem ao coração e se entregou. Tudo no melhor estilo romântico, depois de uma bela massa italiana regada ao sabor e às emoções de um bom vinho tinto. Não demorou 24 horas para que ele ocupasse o lado direito da cama de casal, vago há dez anos, desde que ela se separou.

Bom partido

Jaime, conta Renilda, era um marido acima de qualquer suspeita. Dividia as contas com facilidade, fazia o supermercado, bancava cursos de línguas para a mulher e gostava de caprichar no churrasco e na cerveja gelada nos finais de semana. Despertava às cinco da manhã para enfrentar a labuta e retornava a casa pela noite. Vaidoso, Jaime praticava caratê e adorava correr pela praia para manter o corpo em forma. Renilda, a princípio, não tinha o que reclamar da união – até uma plástica em seus olhos Jaime tinha financiado. A lua-de-mel, porém, durou até a primeira mentira, em abril de 2001, quando Renilda descobriu a farsa do falso leigo. Ela foi ao carro retirar as compras do mês. No porta-malas havia uma caixa dourada que chamou sua atenção. “Pensei que era um presente surpresa”, lembra. “Quando abri o embrulho vi uma batina linda dentro. Na hora me zanguei, porque achava que ele me enganou e estava ensaiando quadrilha e não tinha me contado. Perguntei:

– Jaime, o que é isso?
– Ele respondeu: é isso mesmo, uma roupa de sacerdote.
– Mas o que ela está fazendo aqui?
– É minha.
– Como assim?
– Eu não vou mentir para você. Essa é mesmo uma roupa de padre. Eu sou um padre e vou completar dois anos de sacerdócio.

O mundo desabou naquela hora. E mesmo assim eu não acreditei. Ele, tranqüilamente, enfiou a mão na carteira e mostrou-me a identidade de religioso”, conta Renilda.

A descoberta de que o homem que tratava como marido era um padre transformou a vida de Renilda em verdadeiro purgatório. No início, chegou até a cogitar a possibilidade de fazer vista grossa a tudo o que descobrira. Afinal, embora não vivesse um conto de fadas, possuía ao lado de Jaime uma situação financeira confortável, algo muito além da miséria da infãncia. Para decidir levar suas denúncias adiante pesou o fato de ser uma católica praticante, o que lhe impunha uma autocondenação. “A possibilidade de não mais comungar com a consciência tranqüila me aterrorizava”, lembra Renilda. Ela conta que em nenhum momento Jaime pediu perdão. Pelo contrário, o padre teria tentado convencê-la de que a situação vivida por ambos era quase normal. “Ele falou que quando padre não tem esposa, tem marido”, disse. O padre, segundo Renilda, não aceitava a possibilidade de separação e passou a ameaçá-la, dizendo que espalharia pela comunidade que ela era uma prostituta. Apesar das ameaças, Renilda levou o caso ao bispo e nesse momento começou a segunda parte de seu drama: teria que continuar vivendo com o “marido” como se nada de anormal estivesse ocorrendo, apenas para convencer o alto clero de que suas afirmativas eram verdadeiras.

Sexo e mentiras

Enquanto juntava provas contra o padre, Renilda viveu momentos de pura loucura. “Concordei até em participar da celebração de nosso próprio casamento. Ele
chegou com um buquê de lírio branco, um cálice, hóstia e uma Bíblia. Vestiu a
batina, trouxe-me uma camisola linda e fez nossa união”, relata. Renilda conta que com o passar do tempo o comportamento do padre se tornou cada mais mais promíscuo. Nas viagens que o casal fazia, por exemplo, Jaime alugava casas com amigos onde era feito sexo grupal, inclusive com acessórios eróticos. “Era uma promiscuidade total”, confessa.


Quase mensalmente, Renilda voltava ao bispo para reafirmar suas denúncias. Mas, segundo ela, a cada visita o bispo exigia novas provas. “Em 2004 cheguei a entregar comprovantes mostrando que o endereço dele era na minha casa. Até uma fita de vídeo com a gente nu na minha cama foi entregue”, afirma. Foi a cartada final. As denúncias surtiram efeito e Jaime foi afastado da Arquidiocese de Olinda e Recife. Ele assumiu um novo posto em outra comunidade a 500 km da antiga paróquia. A ISTOÉ, padre Jaime negou tudo, e nem sequer admite que foi afastado da Igreja por má conduta sexual, conforme decreto da Cúria de 2004. “Saí por divergências ideológicas”, garante ele. “É tudo mentira, são calúnias dessa Renilda, que está aperreada. Eu a conheci em 2002 e nunca estive dentro de sua casa. As batinas que Renilda diz serem minhas ela deve ter comprado, as fotos são montagens. Nego tudo”, diz. Agora, a definição do que poderá ocorrer está com o Judiciário.


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