O saco plástico número quatro tinha uma janelinha retangular na parte superior. Através dessa abertura pude observar a cabeça de uma criança, com a boca aberta. Por alguma razão, quando olhei para aquela criança albanesa de Kosovo, pensei num viajante espacial. Seus lábios encostados na janelinha pareciam respirar. Imaginei que estivesse em algum lugar distante, transportada em um sonho. Gostaria que a criança estivesse mesmo viva, que tivesse respirado o suficiente para viver o fim dessa guerra." O relato dramático é do jornalista americano Paul Watson do jornal Los Angeles Times que se emocionou depois de perambular dias por entre escombros, deparando-se com dezenas de corpos esquartejados e queimados em Prizren, a segunda maior cidade do Kosovo.

Histórias como essa deverão tornar-se rotina para a única brasileira a participar do Tribunal Criminal Internacional da ONU para a ex-Iugoslávia, a promotora curitibana Cristina Schwansee Romanó, 37 anos. Cristina está de malas prontas para embarcar para Pristina, capital de Kosovo, onde chefiará uma equipe de mais de 40 investigadores internacionais. A missão da equipe, que inclui patologistas e antropólogos, é recolher provas para punir os criminosos de guerra: casos de estupros, assassinatos e torturas. Estabelecido pela ONU em 1993, esse tribunal sediado em Haia, na Holanda, tem a tarefa específica de averiguar e processar os crimes ocorridos durante a guerra na Bósnia-Herzegovina (1992-95) e o conflito entre sérvios e albaneses no Kosovo.

As cenas de desolação ainda estão frescas na memória da promotora, que esteve entre os dias 6 e 20 de maio nos campos dos refugiados albaneses em Skopjie, Macedônia. Entrevistando refugiados em bandos, Cristina também percorreu as cidades de Durres e Kukes, na Albânia. "Nos campos, passei a acreditar muito mais na atuação de um tribunal criminal de Justiça. Somos a única esperança para os que sofreram atrocidades. Eles sabem que têm pessoas que estão lutando para que os criminosos sejam punidos. Acredito no tribunal mesmo que Milosevic não venha a ser preso", diz.

Cristina Romanó entrou para a história quando participou da redação, em maio deste ano, do documento que indiciou o presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, além de quatro militares do alto escalão do governo, por crimes contra os kosovares. Foi a primeira vez que um chefe de Estado foi denunciado por um tribunal internacional. Na quinta-feira 24, o governo americano colocou a cabeça do dirigente sérvio a prêmio, oferecendo US$ 5 milhões para quem prestar informações sobre ele e outros acusados de crimes de guerra. O alvo do Tribunal de Haia são os chefões da guerra, os que mandam matar, e não apenas a soldadesca que cumpre ordens.

Como cães perdigueiros, os investigadores da ONU seguem o rastro do horror. Em Pec, a 75 quilômetros da capital Pristina, a família da albanesa Alisa Bala, que aparenta muito mais que seus 38 anos, foi totalmente dizimada. No dia 12 de junho, disparos de um fuzil mataram três dos seus quatro filhos, Hajri, 12 anos, Dardane, seis anos, gêmea do menino Agon. Sua cunhada Musa, 28 anos, também estava com mais três crianças. Musa foi violentada e assassinada juntamente com as três crianças de Alisa. Alisa ficou apenas com o marido Isa e seu único filho, os três traumatizados. Corajosa, delatou aos investigadores o dono do fuzil que matou seus filhos, o comandante sérvio Nebojsha Minic. Alisa foi atendida em estado de choque pelo hospital de Pec. Mas no hospital a dor continua: os poucos remédios existentes foram levados pelos médicos sérvios que abandonaram a cidade.

 

Na rota dos massacres Desde que os investigadores chegaram ao Kosovo, há duas semanas, nas pegadas das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), não param de jorrar as denúncias de crueldades apuradas em entrevistas. Abusos sexuais e intimidações estão presentes em quase todos os depoimentos. Muitas albanesas sentem vergonha em apontar os transgressores por quem foram violadas. Outras são incapazes de reconhecer os soldados. Há casos como um bando de soldados sérvios que usou máscaras negras para estuprar meninas de um comboio de refugiados.

Na segunda-feira 14, as tropas britânicas desenterraram em Kabanic mais de 81 corpos. Em Velika Krusa, vilarejo próximo a Prizren, foram encontrados restos de mais de 105 pessoas carbonizadas, entre elas cerca de 30 crianças. O cheiro de carne em decomposição não impediu a visita do ministro britânico das Relações Exteriores, Robin Cook. Um dos acusados pelos massacres de Velika Krusa, Zeljko Raznatovic, o famigerado Arkan, passeia calmamente por Belgrado dando entrevistas para a televisão.

O difícil desafio para a equipe da promotora brasileira é fazer com que os acusados realmente cheguem ao tribunal e cumpram as penas, muitas delas ainda em processo de investigação. A chefe dos promotores de Haia, Louise Arbour, afirmou que estão tentando "aprovar uma política mais agressiva de prisões". Na lista, Arbour inclui o líder dos sérvios da Bósnia, Radovan Karadzic, tido como o "carniceiro de Sarajevo", já indiciado, mas até agora livre e solto em Sprska, a república sérvia da Bósnia. O tribunal já realizou mais de 20 processos contra 80 pessoas, mas não chega a 30 o número dos detidos. Outro problema é a soberania nacional. De acordo com as normas do Tribunal de Haia, nenhum país pode prender um líder em seu próprio território. Para que Milosevic, por exemplo, seja colocado atrás das grades, seria preciso que ele fosse preso no exterior, fora de seus domínios.

 

Polêmicas do tribunal Um ponto polêmico é a questão da responsabilidade da Otan, acusada de matar civis durante os bombardeios no Kosovo. "O tribunal está hábil para julgar crimes contra a humanidade dentro do território iugoslavo, desde que provadas as evidências", afirma Cristina. Mas é muito pouco provável que a Otan seja colocada no banco dos réus. O Exército de Libertação do Kosovo (ELK) também poderá enfrentar julgamentos. Sua desmilitarização já começou, mas os albaneses também estão sedentos por vingança. Com o regresso dos milhares de refugiados, a grande questão é como impedir que esse ódio desencadeie uma nova onda de crimes. Nesse emaranhado catastrófico, as forças internacionais de paz agora estão às voltas com a segurança dos sérvios que lotam carros e ônibus e partem em pânico para as repúblicas vizinhas Sérvia e Montenegro. Dos 190 mil sérvios que viviam no Kosovo, estima-se que 90 mil partiram em retirada. Até sexta-feira 25, pelo menos 13 sérvios tinham sido assassinados por albaneses.

"Existe uma raiva histórica, enraizada. Não consigo entender isso, o porquê de tanto ódio", confessa a brasileira Cristina Romanó. Agora, ela se prepara para enfrentar o horror. "Vão ser 24 horas ouvindo depoimentos de pessoas que viveram tragédias em meio da própria tragédia. É um desafio. Além disso, não há eletricidade nem água em Pristina. Vou levar meu sleeping bag. Não sei o que vem pela frente."