Todos os dias, seis mil sírios juntam o que sobrou de seus lares e partem para viagens que não gostariam de fazer. Quando uma nação arrasada, como o Iraque, se torna uma opção melhor do que a própria terra natal, fica fácil compreender a dimensão da tragédia. A Síria se tornou um país inabitável. Já há dois milhões de refugiados em lugares como Líbano, Turquia e Jordânia. Calcula-se em 4,5 milhões o número de viajantes que se deslocam dentro das fronteiras da Síria, em busca de abrigos localizados em regiões distantes das zonas de guerra e oferecidos por parentes, amigos ou qualquer um que tenha alguma piedade. Nos mais de dois anos de guerra civil, os mortos ultrapassam os 100 mil. Muitos mais morrerão. “É uma situação cruel de sofrimento e uma lástima que a comunidade internacional não tenha tido sensibilidade para reagir a tempo”, disse à ISTOÉ o diplomata brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão Internacional de Investigação das Nações Unidas para a Síria. Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, iniciou uma campanha para ganhar o apoio do Congresso a uma intervenção militar. Tantas vezes adiada, a ofensiva, que não está livre de produzir vítimas, se tornou legítima depois dos ataques de armas químicas que mataram mais de 1,4 mil pessoas, muitas delas mulheres e crianças, no subúrbio de Damasco, há três semanas. Mas, apesar de compreensível, a nova fase da Guerra da Síria tem ao menos um resultado previsível: não haverá vencedores.

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VÍTIMAS DO CONFLITO
Famílias de refugiados cruzam a fronteira com o Iraque, em Peshkhabour.
Em mais de dois anos de guerra civil, dois milhões de sírios deixaram o país

Para os EUA, foi o ditador sírio Bashar al-Assad que ordenou o ataque com armas químicas. Ainda assim, em vez de atacar o país como disse que faria, o presidente americano buscou apoio interno, em uma atitude que dividiu opiniões. “A relutância em agir e a falta de senso de urgência só encorajam o regime sírio”, afirma Frederick Fleitz, ex-agente da CIA e ex-conselheiro do Departamento de Estado. Segundo Fleitz, que hoje é analista do grupo Lignet, de Washington, Al-Assad ganhou tempo para movimentar suas armas e soldados e criar barreiras humanas com prisioneiros, ativistas e crianças posicionados em instalações militares. Ao levar a decisão para o Congresso, Obama também pode ser obrigado a tomar uma medida pior: realizar um ataque maior que o inicialmente planejado. “Como resposta imediata às armas químicas, ele poderia ter se saído com um pequeno e rápido bombardeio”, afirma Paul Salem, diretor do Carnegie Middle East Center, de Beirute. Agora, depois de um debate nacional, o presidente não teria mais como agir com modéstia.

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Analista de política externa do Century Foundation, de Nova York, Michael Cohen aprova o recurso ao Congresso na busca por cumplicidade, especialmente numa guerra sem saída fácil. “Essa é uma situação única, porque nenhum americano foi ferido e a Síria não é um país estratégico”, diz Cohen. Ao mesmo tempo, o governo americano sabe que ignorar as evidências de um ataque químico poderia encorajar o Irã e a Coreia do Norte, ambos entusiastas de bombas nucleares. A proposta já foi aceita por um comitê do Senado e recebeu a aprovação de velhos falcões republicanos. Os americanos, entretanto, ainda não parecem convencidos. Todas as pesquisas de opinião divulgadas até a semana passada mostram que a maioria é contra a ofensiva e cética quanto à capacidade de os EUA impedirem o uso de armas químicas na Síria.

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Eleito por uma população cansada das batalhas promovidas por seu antecessor e condecorado com um Nobel da Paz logo no primeiro ano de governo, Obama sabe que uma guerra não é o que se espera de seu currículo. No papel de conciliador, o presidente americano evitou se envolver na Síria e estabeleceu uma “linha vermelha” sobre o uso de armas químicas, como forma de adiar sua participação no conflito. Se ainda fosse senador, ele provavelmente seria crítico a mais uma intervenção militar no Oriente Médio. Os desdobramentos da Primavera Árabe e as mudanças no equilíbrio de poder na região testaram a credibilidade de sua política externa. Para Obama, chegou a hora de recalcular sua estratégia. “Por mais que sejamos criticados, quando coisas ruins acontecem no mundo, a primeira pergunta que surge é o que os EUA farão em relação a isso”, declarou.

A decisão de intervir expõe um ranço imperialista com o qual Obama não gostaria de ser vinculado. Guerrear faz parte da própria alma americana. Até 1947, os EUA chamavam o seu Departamento de Defesa de Departamento da Guerra. Desde o fim da II Guerra Mundial, o país ordenou mais de uma centena de intervenções militares de diferentes dimensões. Na última década, a participação dos EUA nas despesas militares globais saltou de um terço para a metade do total. Os gastos com Defesa, em termos reais, cresceram tanto no período que hoje estão US$ 100 bilhões acima da média gasta durante a Guerra Fria, de acordo com o Center for American Progress. Nos oito anos à frente da Casa Branca, George W. Bush elevou o orçamento anual do Pentágono de US$ 412 bilhões para US$ 699 bilhões. Nos primeiros anos como presidente, Obama reduziu o valor timidamente. Mesmo assim, o orçamento militar nas mãos do presidente, com exceção de Bush, é o maior desde Franklin Roosevelt, que morreu no cargo em 1945.

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O tabu contra o uso de armas químicas que os americanos querem defender agora é uma das normas globais mais antigas. A razão, segundo o pesquisador Michael Cohen, é simples: esse tipo de arma causa assassinatos em massa e é mais uma ferramenta para ferir inocentes do que para ganhar uma guerra. Muitos estudiosos, porém, enxergam na atual postura dos EUA algo de cínico. Há indícios de que os próprios americanos usaram agentes químicos no Vietnã e no Iraque. Durante os anos 80, o Irã foi vítima de ataques com sarin pelas forças de Saddam Hussein e, embora documentos de inteligência mostrem que o presidente Ronald Reagan sabia disso, ele nada fez. Além disso, Israel também é acusado de usar gases letais contra o Líbano e nem assim os americanos coordenaram uma campanha condenatória.

Nos bastidores, a participação americana na Síria já existe. Nos últimos meses, surgiram relatos de que os EUA têm treinado rebeldes moderados na Jordânia e, desde junho, agentes da inteligência americana têm autorização para armá-los. As armas destinadas a esse grupo, contudo, ainda não chegaram. A cautela se deve ao temor de ajudar a Al-Qaeda. “Queremos ter certeza de que as armas não vão cair nas mãos erradas”, diz Andrew Terrill, especialista em Oriente Médio do Instituto de Estudos Estratégicos do Exército americano. Na estimativa apresentada pelo secretário de Estado, John Kerry, extremistas islâmicos representam entre 15% e 25% da oposição, que soma de 70 mil a 100 mil rebeldes. Nas contas de Al-Assad, os aliados da Al-Qaeda representariam 90% dos opositores. Por isso, os americanos examinam, num lento processo que inclui até quatro checagens, o histórico de determinados líderes rebeldes e suas ligações com redes terroristas. Menos prudentes e mais interessados na deposição de Al-Assad, Arábia Saudita, Qatar, Turquia e Jordânia são hoje os principais fornecedores de armamentos dos rebeldes.

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Enquanto a atmosfera em Damasco se aprofunda na angustiante espera por um ataque ocidental, Bashar al-Assad não demonstra sinais de abatimento. O presidente trata a guerra com distanciamento, como se sua figura pouco ou nada tivesse a ver com ela. A exemplo do que tem feito nos últimos dois anos e meio, ele manteve seus compromissos oficiais desde que os EUA determinaram que ele ultrapassara a “linha vermelha”. Em seu perfil no Instagram (aplicativo de fotos para smartphones), as atualizações mostram o ditador em encontros com autoridades, religiosos e estudantes, com legendas em inglês e árabe. Sua esposa, Asma, sempre sorridente e impecavelmente bem-vestida, aparece distribuindo comida para famílias desalojadas.

Apesar da estratégia de mostrar um lado mais suave, Al-Assad sustenta um discurso agressivo. Em entrevista ao jornal francês “Le Figaro”, ele disse que a única forma de combater os terroristas da oposição é exterminando-os e, à tevê estatal, declarou que estava pronto para reagir a qualquer agressão estrangeira. O Irã e o grupo libanês Hezbollah reafirmaram sua aliança com Al-Assad e, em retaliação a um ataque, podem promover instabilidade em países como Israel, Turquia e Jordânia. “É esperado que o Irã vocifere e considere enviar mais apoio ao regime de Al-Assad”, afirma Andrew Terrill. Mas tudo pode não passar de jogo de cena. A economia do país tem sofrido com as sanções impostas pela ONU a fim de interromper seu programa nuclear e o novo presidente Hassan Rohani, um moderado, deve parte de sua eleição à expectativa de que consiga removê-las. “E uma forma de garantir que isso nunca aconteça é se engajar num Estado terrorista, como a Síria”, diz Terrill.

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DOIS LADOS
Bashar al-Assad (à esq.) é um ditador sanguinário, mas as forças de oposição (à dir.)
acolhem extremistas islâmicos ligados à rede terrorista Al-Qaeda

Outro importante aliado de Al-Assad, a Rússia não dá sinais de que facilitará o caminho dos americanos. Na abertura da reunião do G-20 em São Petersburgo, na quinta-feira 5, o presidente russo, Vladimir Putin, chamou John Kerry de mentiroso por omitir a Al-Qaeda em seus discursos. Fortalecer o inimigo, afinal, seria o maior revés da operação americana. Desde que tomou a decisão de intervir, Barack Obama tem dito que derrubar Al-Assad não está em seus planos. O problema em escolher o lado da oposição como solução para o conflito é que os rebeldes não são uma força unida e pacífica. Sem Al-Assad, a Síria poderia viver uma situação parecida com a do Afeganistão pós-Talibã, em que diversos grupos armados e rivais brigam pelo poder. O Egito, que desde a queda do ditador Hosni Mubarak vive um caos político entre militares e extremistas islâmicos, também é um exemplo que o Ocidente quer evitar. Neste caso, como disse Ian Bremmer, presidente da consultoria Eurasia, “é mais desafiante quando o inimigo de seu inimigo é seu inimigo”.


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PROVOCAÇÃO
O presidente da Rússia, Vladimir Putin (à esq.), chamou o secretário de
Estado americano, John Kerry (à dir.), de mentiroso por não citar a Al-Qaeda

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