Pouco depois das 20 horas da segunda-feira 31, o pré-candidato republicano George W. Bush fez a última parada de uma longa agenda de compromissos na cidade de Manchester – a capital cultural do Estado de New Hampshire. A neve suja cobria sua famosa bota de cowboy, marca registrada deste governador do Texas. "Quais são as últimas previsões meteorológicas para amanhã?", perguntou a um assessor. Já se sabia naquele momento que a fabulosa máquina de campanha montada pelo establishment republicano dava sinais de enguiço. O interesse climático tinha motivo pragmático para este que até então era apontado como favorito do partido: quanto melhor fosse o tempo, maior o número de eleitores nas cabines de votação nas eleições primárias de New Hampshire – as primeiras de uma série de votações no país, e que vão escolher os representantes de cada partido para concorrer à Presidência americana em novembro próximo. Se o comparecimento fosse bom, os índices finais poderiam complicar o resultado, dando ao rebelde senador do Arizona John McCain maiores vantagens. New Hampshire sempre foi famoso por sua preferência por candidaturas mais independentes e rebarbativas. E o Serviço Nacional de Meteorologia era implacável em suas análises: tempo bom, com sol e temperatura variando na casa dos dois graus positivos (ameno para o gélido território). Em outras palavras, aproximava-se tempestade brava para Bush.

Com o sol derretendo montanhas de neve, os votos caíram como avalanche sobre as pretensões de Bush. Nenhum republicano que tenha perdido a primária de New Hampshire jamais chegou vitorioso à Casa Branca. Logo depois que as urnas fecharam às sete da noite da terça-feira 1º, as projeções anunciavam que o senador John McCain contabilizaria 49% dos votos, deixando seu rival do Texas num distante segundo lugar com 31%. Uma vitória ainda maior do que o esperado, graças ao maciço comparecimento de eleitores independentes. Foi também este mesmo contingente que, do lado democrata, deu uma vantagem apertada ao vice-presidente Al Gore, que concorre contra o ex-senador de Nova Jersey e ex-jogador de basquete pelo New York Knicks-Bill Bradley. Uma vitória com sabor de empate, já que Gore ficou com 52% de votos, contra 47% de Bradley. E o que é pior, para a nova etapa sangrenta, o vice-presidente conta apenas com US$ 12 milhões em seus cofres, enquanto seu oponente ainda tem US$ 15 milhões.

Corpo a corpo
Assim, os delfins ungidos pelas forças oficiais dos dois maiores partidos americanos tiveram um tira-gosto da amarga batalha que terão pela frente até as convenções. Um surrado chavão político americano diz que os eleitores de New Hampshire só se decidem 48 horas antes de irem às urnas. Mas desta vez parece que a cabeça desta gente já havia sido feita há muito tempo. John McCain concentrou todos seus esforços no namoro com este Estado. Nem sequer chegou a fazer campanha em Iowa, que não é considerado tão importante – o Estado realiza apenas um cáucus onde os cidadãos se reúnem em assembléias e votam por consenso, ao contrário de uma primária, onde cada eleitor registrado num ou noutro partido vota individualmente, do mesmo modo que nas eleições gerais. Durante 65 dias – mais do que qualquer outro candidato -, McCain participou de 114 eventos, entre comícios e assembléias comunitárias tão ao gosto local. "Aqui tudo se decide em assembléia. Se uma pessoa vai pintar a cerca do quintal, é capaz de a comunidade fazer uma assembléia", caçoa Jane Walsh, garçonete do Shannon Door Pub, famoso reduto de politicagem em North Conway. Somente naquele pub, McCain – honrando suas raízes irlandesas – foi quatro vezes e tomou exata meia dúzia de copos de cerveja Guinness. Foi lá que ele disse a ISTOÉ: "Aposto uma rodada como vou ganhar as primárias. A questão é só saber de quanto será a vantagem. E, caso se confirmar na Carolina do Sul a tendência antiestablishment que temos visto, você vai cobrir a minha posse em Washington daqui a um ano."

O tamanho de New Hampshire, com população de 1,3 milhão, dificilmente justificaria tamanha atenção de um candidato. O Estado, porém, ganhou fama de termômetro político do país. A primeira eleição primária feita naquele território se deu em 1952 e o general Dwight Eisenhower (1890-1969) saiu vencedor, elegendo-se depois como 34º presidente americano. De lá para cá este colégio eleitoral tem feito história: foi ele quem tornou possível a recuperação de Bill Clinton depois do escândalo com sua ex-amante Jennifer Flowers. A boa votação em New Hampshire também lhe valeu o nome de "Come Back Kid" – numa menção a quem consegue dar a volta por cima. Mas depois da eleição de Clinton, naquele 1992, a fisionomia local mudou muito, mais ainda do que no restante do país. Naquela época, a recessão tornara grave a situação no Estado, suas principais formas de sustento estavam no corte de madeira e serrarias. Hoje, com a explosão econômica, os níveis de desemprego baixaram para 4% – menores do que a média nacional – e as atividades econômicas mudaram da madeira para a indústria de informática, alta tecnologia de ponta e um bem azeitado sistema financeiro.

Um batalhão de novos habitantes mudou para o Estado. "Temos agora 34% a mais de pessoas novas em New Hampshire, gente que mudou vinda de outras partes", diz Elliot Steele, da Câmara de Comércio na capital Concord. "A situação econômica é uma das melhores de nossa história." Esta migração trouxe também mais iconoclastas. Os eleitores registrados como "independentes" – e que podem votar tanto nas primárias republicanas, quanto nas democratas – eram 28%, e passaram a 37%. Foi neste exército que McCain apostou todas as suas fichas. O mesmo fez Bill Bradley – com ótimos resultados.

 

Era tamanho o afã dos candidatos no cortejo desses eleitores independentes que seus esforços passaram pelo surrealismo e despencaram no absoluto ridículo. Pegue-se, primeiramente, o milionário Steve Forbes (13% dos votos), dono de uma publicação econômica que leva seu sobrenome. Não obstante, anda acompanhado por dois enormes porcos – homens fantasiados de suínos. Trata-se de uma referência a sua plataforma de acabar com o chamado "pork" – maracutaias econômicas de políticos. E, como diz o lugar comum: "Dize-me com quem andas etc…" A companhia da porcada já valeu a Forbes o apelido de "Legítimo Porco Capitalista".

À sombra do pai
George W. Bush também é um homem de muitos recursos. O melhor deste arsenal é seu pai, o ex-presidente George Bush. Grande parte dos eleitores que mostram disposição em tascar seu voto em Bush, o moço, o fazem em deferência a Bush, o velho. Fora isso, ninguém sabe direito o que pensa Bush, o moço. Desde que se lançou na corrida para retornar à famosa casa na avenida Pensilvânia, em Washington, o candidato já se atrapalhou com a gramática; não soube dizer o nome de vários líderes mundiais; foi revelado como um ex-alcoólatra; ficou sob suspeita de ter cheirado cocaína; não conseguiu afastar a imagem de ter feito negócios escusos na indústria financeira e também na compra de um time texano de beisebol. Pouco importa: Bush, o velho, sempre pareceu honesto e isso veio como benefício hereditário para Bush, o moço. Também ganhou de presente a mais fabulosa fortuna já amealhada por um candidato republicano para seus fundos de campanha. Estima-se que seus cofres já contenham US$ 50 milhões. A dinheirama também trouxe como benefício paralelo à imagem de que Bush, o moço – ao contrário de Bush, o velho – era imbatível. O establishment republicano se acotovelava nas portas da sede da campanha no Texas para colocar seu jamegão na lista de endossos à candidatura irresistível. Os acontecimentos mostrariam que Bush, o moço, pode ser transformado em Bush, o breve.

A campanha na base do varejo, como é típico de New Hampshire, acabou. A partir da Carolina do Sul, no dia 19 de fevereiro, começa a campanha no atacado, onde o que vale são os caríssimos anúncios de rádio e televisão. Apesar de New Hampshire ser vista como definidora de tendências, agora o atrevido McCain pagará muito caro para manter viva sua candidatura. E quando a chamada superterça chegar, no dia 7 de março, quando 16 Estados de peso votam, talvez um novo Bush seja coroado.