A frase estampada na entrada do Hospital de Doenças Infecto-Contagiosas (HDIC) de Teresina, no Piauí, é emblemática: "Os homens adoecem porque são pobres. Mantêm-se pobres porque estão doentes e continuam doentes porque são pobres." Cunhada no século passado, a frase continua mais válida do que nunca. Há duas semanas, em São Paulo, enquanto o senador Antônio Carlos Magalhães se tratava de um princípio de pneumonia no Hospital Israelita Albert Einstein – considerado um dos melhores do País – centenas de pessoas se aglomeravam no HDIC, em Teresina, em busca de tratamento para a meningite, doença que está assolando a cidade. E o problema não é só ali. O Brasil convive com males que deveriam ter sido riscados do mapa há tempos. Na região amazônica, malária; em Alagoas, cólera; em Pernambuco, cólera; e, em Goiás, febre amarela. Esses são os principais problemas que os Estados enfrentam neste início de ano. Na verdade, eles somam-se a outros tantos como dengue, leptospirose etc., que frequentam principalmente as estatísticas dos Estados do Norte e Nordeste. São doenças de quem está na rabeira do processo social, decorrentes da falta de saneamento básico e higiene pessoal.

Em Teresina, por exemplo, somente 10% da cidade tem esgoto tratado. Boa parte da população faz do chão um banheiro. Na periferia da capital é comum a convivência dos moradores com lagoas de esgoto e lixo acumulado. Em oito anos, de 1991 a 1999, o número de favelas pulou de 50 para 150, abrigando um total de 38 mil domicílios, dos quais 15 mil sem um único banheiro. Essa combinação, aliada às chuvas que caem nesta época do ano, é o que explica o surto de meningite viral que ataca a cidade. Desde outubro do ano passado foram registrados cerca de 800 casos, sendo que mais de 300 apenas em janeiro. "É o maior surto dos últimos dez anos", afirma Eliane Aboim, coordenadora executiva de Saúde municipal. Uma das formas de contaminação é a fecal-oral. Ou seja, as fezes do doente, contendo o vírus da meningite, se espalham pelos locais sem saneamento e os vírus se proliferam contaminando quem entra em contato com as águas.

A maioria dos casos é atendida no HDIC, centro de referência do Piauí, mas que recebe também portadores das mais diversas moléstias vindos de Estados vizinhos como o Maranhão. Na quarta-feira 2, o hospital se transformou num caos. Seus 137 leitos estavam lotados e não havia capacidade para atender os mais de 50 casos que chegaram ao local. Nesse dia, Dorotéia Martins acompanhava o filho Elton, cinco anos, com meningite. "Ele não me deixa nem almoçar. Quer que eu fique grudada o tempo inteiro." Como os exames que são feitos para detectar se a meningite é viral ou bacteriana demoram cerca de cinco dias para ficarem prontos, todos os pacientes são tratados com antibiótico preventivamente. O atendimento no hospital, porém, é precário. As mães ficam amontoadas com os filhos em quartos que chegam a ter até dez pacientes. O banheiro é coletivo e fica dentro do quarto, não há ventiladores e o estoque de antibiótico (ampicilina) esteve ameaçado. O hospital, inclusive, recebeu até um paciente com febre amarela: o caminhoneiro baia-no Rômulo Passos, 27 anos. Ele viajava do Pará em direção a Petrolina, em Pernambuco, quando começou a sentir febre, sensação de cabeça pesada, diarréia e fraqueza. "Nunca tomei vacina", conta.

Para conter o avanço da meningite, a Fundação Municipal de Saúde de Teresina promove campanhas educativas, criou um serviço telefônico de informação e distribuirá hipoclorito de sódio para esterilizar a água. "Poderíamos fazer mais. Só que falta dinheiro", lamenta Eliane Aboim. Perto do Piauí, o cenário não é muito diferente. Em janeiro, no Recife, o presídio Aníbal Bruno passou por um surto de cólera que custou a vida do detento Emanoel Gomes de Oliveira, 32 anos. Houve 300 casos suspeitos da doença, que também está ligada à falta de saneamento básico e a maus hábitos de higiene. O preso Marco Antonio de Melo, 39 anos, foi uma das vítimas e ficou três dias internado num hospital: "Comecei a passar mal depois de ter comido um peixe no almoço", diz. Foram encontrados dois focos do vibrião da cólera no presídio: no esgoto e numa cela do pavilhão A. Na cela, o microrganismo foi encontrado na água que os presos armazenam em tanques improvisados. Essa prática é comum no local por causa de um problema crônico no Recife: a falta de água. Na cidade, onde só 18% dos moradores dispõem de rede de saneamento, é comum o uso de carros-pipas e de poços artesianos para abastecer as residências e o comércio, que recebem água encanada a cada quatro dias. No presídio, a água só chega uma vez por semana e o abastecimento é reforçado por três poços artesianos. Para evitar novos casos de cólera, a direção ordenou que se fizesse um redimensionamento da capacidade do esgoto e passou a distribuir hipoclorito de sódio para colocar na água. "Infelizmente, só tomamos medidas depois que o ladrão arromba a porta e leva tudo", admite o coronel Geraldo Severiano da Silva, superintendente do Sistema Penitenciário de Pernambuco.

O que aconteceu no presídio, no entanto, é uma pequena amostra do que se passa do lado de fora dos muros. Somente em 1999, Recife registrou 2.315 casos de cólera, o dobro do que foi constatado em 1998. E isso depois de ter passado por um surto em 1993 que atingiu quase dez mil pessoas e causou 137 mortes. O bairro mais atingido no ano passado foi o de Brasília Teimosa, com 39 casos. O local, que leva esse nome por ter sido fundado à época da inauguração de Brasília e pela luta travada com o governo para a ocupação da área (depois de muita "teimosia" eles ergueram as casas), abriga um dos lugares mais pobres do Recife. São mais de 500 palafitas que ficam na orla, onde moram quase duas mil pessoas. Nas casas não há banheiro, nem cestos de lixo, nem torneira, nem nada que se assemelhe a condições de vida digna.

E o rastro de doenças percorre o País. Em Alagoas, só este ano já são 113 notificações de casos de cólera. Em 1999, foram 838, com cinco mortes. No Rio, o panorama também é lamentável. No ano passado, houve 8,7 mil casos notificados de dengue e mais de dois mil de meningite. Neste ano, os casos notificados de meningite já são 99. Entre os fluminenses, a tuberculose também atingiu mais de 12 mil pessoas no ano passado. E, na Amazônia, seis milhões de habitantes estão expostos à malária. Infelizmente, as causas desses números são conhecidas. "É notório que o governo prefere saciar seus desejos capitalistas de ascensão ao poder e autopropaganda a investir na saúde e na educação", afirma Marcos Boulos, professor da Universidade de São Paulo (USP). "Essas doenças são um problema sistêmico que há vários governos atrasa o Brasil", completa Vasco de Lima, um dos diretores do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Contundente, as críticas dos médicos são compartilhadas por outros especialistas. "Gasta-se muito com medicina para tratar doenças e pouco com medicina preventiva", diz Delsio Natal, professor da USP. Os médicos também lamentam o péssimo hábito das autoridades em agir somente quando o problema ganha dimensões maiores. "Em relação à febre amarela, por exemplo, deveria haver o combate do mosquito transmissor da doença. Campanha emergencial não resolverá o problema", opina Carlos Osanai, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio.

Apesar da gravidade do problema, o Ministério da Saúde se enrosca em dificuldades até para levantar, de fato, o tamanho das doenças no Brasil. Na terça-feira 1º, ISTOÉ solicitou à Fundação Nacional de Saúde os números totais de casos de vários males que assolam o País nos últimos anos. Até a quinta-feira 3, a entidade ainda não tinha pronto o levantamento. Pior, ninguém da fundação ou do Ministério da Saúde respondeu a ISTOÉ para explicar as ações do governo para controlar essas doenças. "Até nós, médicos, ficamos sem acesso a informações imprescindíveis para nosso trabalho. Sem a dimensão correta do problema nenhuma medida de controle será eficiente", critica Marcelo Burattinni, infectologista da Faculdade de Medicina da USP.
 

TEM REMÉDIO

Algumas das doenças que castigam o Brasil e que poderiam ser evitadas

Cólera
Transmissão

Ingestão de alimentos ou bebidas que tenham contato com água contaminada com a bactéria Vibrium cholerae (presente nas fezes depessoas infectadas)
Prevenção
A vacina é disponível para quem viaja a regiões endêmicas e tem eficácia aproximada de 60%. Lavar bem os alimentos e beber água descontaminada com cloro ou fervura prolongada
Sintomas
Diarréia aquosa e vômito. Nos casos graves perdem-se até 20 litros de água por dia. A desidratação pode causar a morte em 24h
Solução
Saneamento básico.
O tratamento dos dejetos humanos e o fornecimento de água potável são indispensáveis no combate à cólera

 

Febre amarela
Transmissão
A silvestre é transmitida pelo mosquito Haemagogus, que pica macacos com a doença e contamina humanos. A urbana é transmitida entre humanos pelo mosquito Aedes aegypti
Prevenção
A vacina tem eficácia de 90%, é indicada a quem viaja ou mora em regiões endêmicas. Evitar deixar recipientes que acumulem água (meio de cultura dos mosquitos) também é importante
Sintomas
Vômito, dor no corpo, febre e pele amarelada. Em estágio avançado, provoca hemorragias e lesões no fígado e no rim, que podem levar à morte
Solução
Além de aplicação de inseticida, campanha para se evitar o acúmulo de água parada e vacinação abrangente nas áreas de risco

Malária
Transmissão

Fêmeas dos mosquitos Aenopheles transmitem quatro diferentes espécies do protozoário Plasmodium
por meio de picadas
Prevenção
Não há vacina. Evitar proximidade com ambientes hídricos, usar roupas de manga comprida e repelente no entardecer (quando o mosquito ataca)
Sintomas
Dor de cabeça, calafrios, febre intermitente (que vai e volta)
Solução
Controle da migração de pessoas infectadas; medidas de combate ao mosquito

 

Meningite viral
Transmissão
Diferentes vírus chegam ao corpo pela via respiratória ou por água contaminada
e provocam a inflamação da meninge
Prevenção
Alguns tipos possuem vacina, como as provocadas pelo vírus da caxumba. Contra as outras, após contato com pessoas doentes procurar um médico
Sintomas
Dor na nuca, dor de cabeça, vômitos e febre alta
Solução
Aumentar a cobertura de vacinação e ampliar medidas de saneamento básico

Dengue
Transmissão

Pelo mesmo mosquito da febre amarela urbana, o Aedes aegypti. Só que no caso da dengue, o Aedes pode transmitir quatro tipos diferentes de vírus causadores da doença (tipos 1, 2, 3 e 4)
Prevenção
Não há vacina. Evitar o acúmulo de recipientes com água parada e usar inseticidas em locais com mosquitos transmissores são as melhores formas de prevenção
Sintomas
Febre alta, dor de cabeça e no corpo. Se a pessoa é infectada novamente por outro
tipo do vírus, a doença pode aparecer na forma hemorrágica, que algumas vezes leva à morte
Solução
Pulverização, campanhas de esclarecimento sobre a doença. Mais verbas deveriam ser destinadas à pesquisa para o desenvolvimento de uma vacina

Leptospirose
Transmissão

Pela bactéria Leptospira sp presente na urina dos ratos. As epidemias ocorrem mais em épocas de enchente, quando há contato com águas sujas pela urina do animal
Prevenção
Evitar contato com enchentes e lugares infestados de ratos. Pessoas que trabalham com esgoto devem usar roupas impermeáveis
Sintomas
Febre, dores no corpo calafrios e vômito. Podem surgir insuficiência renal, hepática e respiratória, que podem levar à morte
Solução
Acabar com enchentes. Medidas para o controle da população de ratos e a limpeza de terrenos baldios são importantes

 

Meningite bacteriana
Transmissão
Tipos distintos da bactéria meningococo provocam a inflamação da meninge (membrana que reveste o cérebro) depois de entrarem pela via respiratória
Prevenção
Existem vacinas contra os tipos A-B e A-C da bactéria meningococo. Evitar contato com pessoas doentes e procurar um médico quando isso ocorrer
Sintomas
Dor na nuca, dor de cabeça, vômitos e febre alta
Solução
Aumentar a cobertura de vacinação

 

Tuberculose
Transmissão
Via respiratória. Pessoa infectada elimina o bacilo Mycobacterium tuberculosis no ar quando expira. Outra pessoa que respire o mesmo ar pode ser infectada
Prevenção
Vacina que deve ser administrada no primeiro mês de vida. Tem eficácia de 80% a 90%
Sintomas
Febre vespertina, perda de peso e tosse. Se
a doença for mal curada, as bactérias podem atacar outros órgãos além do pulmão. Pode levar à morte
Solução
Ampliar vacinação
e medidas para garantir aumento da aderência ao tratamento, para que a bactéria não crie resistência às drogas