O presidente Fernando Henrique Cardoso enfrentava uma terrível dor de cabeça na manhã da quinta-feira 3. Depois de brindar, no ano passado, a fusão das cervejarias Brahma e Antarctica, temia os efeitos da ressaca provocada pelas denúncias de corrupção no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), encarregado de julgar a legalidade do negócio bilionário. "Não quero que essa especulação toda prejudique meu nome ou minha dignidade", desabafou Fernando Henrique a um assessor. O presidente estava atônito com a sucessão de fatos que colocaram o Cade no banco dos réus, sob a suspeita de que dois de seus conselheiros teriam sido subornados para votar contra a fusão. Com razão. A Polícia Federal tem até agora dois depoimentos explosivos da conselheira Hebe Romano, a relatora do caso. Ela contou ao delegado Luís Carlos Zubcov que o advogado Aírton Soares, ex-deputado federal do PT, a procurou em dezembro do ano passado para informá-la de um esquema de corrupção capitaneado por dois advogados paulistas e para insi-nuar uma proposta de suborno. Hebe Romano também acusou o presidente do Cade, Gesner Oliveira, de haver abafado o caso, dentro do governo, por mais de 40 dias. Isso, segundo uma autoridade com acesso à investigação policial, renderá a Gesner um indiciamento por prevaricação no inquérito da Polícia Federal.

Os dois advogados denunciados à PF por Hebe Romano são Márcio Pugliese e Marco Antônio Campos Sales. Eles teriam montado um esquema de corrupção, disponível tanto para quem estivesse a favor ou contra a fusão. O primeiro é auditor fiscal da Receita Federal em São Paulo e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa Econômica do Ministério da Justiça. Foi levado para o governo Fernando Collor em 9 de abril de 1990 pelo então secretário de Direito Econômico, José Del Chiaro, hoje um dos advogados mais atuantes junto ao Cade. "Não estou entendendo nada, não tenho nenhum envolvimento com isso", reagiu Pugliese ao saber que estava sob investigação da PF. "Mas sou, sim, amigo do dr. Marco Antônio, que é advogado em São Paulo e pertence a uma família tradicional. É neto do ex-presidente Campos Sales." O secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, já sabe que um de seus funcionários está sendo investigado. Recomendou rigor e não deu lá boas referências de seu subordinado. Marco Antônio Campos Sales preferiu omitir-se. Foi procurado três vezes por ISTOÉ e não retornou as ligações. No depoimento à PF, Hebe Romano apontou o advogado Aírton Soares co-mo porta-voz do esquema. O ex-deputado reagiu dizendo que a conselheira está desequilibrada e negou ter feito qualquer insinuação para corrompê-la. "Se a polícia souber dos nomes envolvidos, eu corro risco de vida, pois se trata de gente muito perigosa", desabafou Aírton Soares.

Curinga
Em seu depoimento, Hebe Romano acusou Pugliese e Campos Sales de já terem "comprado" dois conselheiros. Eles precisariam de apenas mais um para definir o resultado do julgamento. Na fusão de Brahma e Antarctica, que juntas formaram a AmBev, só cinco membros do conselho estão habilitados a participar do julgamento. Os outros dois se declararam impedidos: Lúcia Helena Salgado, porque é ex-mulher de um advogado que atuou para a AmBev, e João Bosco Leopoldino da Fonseca, ele próprio ex-advogado da Brahma. Ao denunciar o esquema, Hebe Romano lançou suspeitas sobre seus colegas, pois admitiu que poderiam ser corrompidos. E deixou o presidente do Cade, Gesner Oliveira, numa situação extremamente desconfortável.

A conselheira contou tudo a Gesner assim que foi visitada por Aírton Soares com a proposta velada de suborno. Gesner, numa atitude dúbia, não deu importância ao caso, mas autorizou-a a comunicar o fato às empresas envolvidas: Brahma, Antarctica e Kaiser. O que foi feito em janeiro. Obviamente, o relato gerou um tremendo mal-estar nas três companhias. Afinal, nenhuma delas entrou nessa briga para perder. Ainda assim, Gesner não tomou nenhuma providência séria para apurar a verdade sobre uma história que, repetida aos quatro ventos pela conselheira-relatora, ganhou uma versão institucional. Pelo Cade, diz Ges-ner, o ministro da Justiça, José Carlos Dias, jamais saberia do esquema de suborno. "O ministro ficou sabendo porque tem boas relações de amizade", alfineta Gesner, sugerindo que Dias, como advogado, soube por uma das empresas envolvidas.

Melar o jogo
A seus assessores, o ministro José Carlos Dias tem dito, no mínimo, que Gesner é um "mentiroso". Afinal, foi a própria Hebe Romano que procurou o secretário-executivo do Ministério, Antônio Anastasia, no dia 25 de janeiro, para relatar o assunto e pedir providências. O encontro foi presenciado pelo conselheiro João Bosco Leopoldino. "Há um risco sério de tentativa de melar o jogo", acusa Gesner Oliveira. "É o maior caso da história do Cade, estamos sofrendo uma pressão muito grande e a tendência é aumentar", prevê Gesner, que diz não ter comunicado nada ao Ministério da Justiça porque considerou a história apenas boataria, ainda que recheada de nomes e sobrenomes. Numa coisa Gesner tem razão: o jogo das empresas, de fato, é pesado. Um exemplo. Quem manda hoje na Antarctica é a Brahma, segundo Enoque Costa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Bebidas da Grande São Paulo. Ele conta que cerca de 60 funcionários da Brahma já circulam em todos os departamentos da sede da Antarctica, no bairro da Mooca, em São Paulo, supervisionando os negócios. Isso apesar de o Cade ter determinado a suspensão da fusão até o julgamento final do caso, previsto para março. "A fusão das duas empresas já está em andamento. Na verdade, a Brahma tomou conta da Antarctica", acusa Enoque, temendo que milhares de trabalhadores sejam dispensados nos próximos meses. As assessorias das duas cervejarias negam que isso esteja acontecendo. Segundo a Antarctica, só dez pessoas com crachás da AmBev circulam pela companhia para levantar dados a serem enviados ao Cade. O mesmo estaria ocorrendo na Brahma. Por trás dessa guerra de nervos, também se esconde uma teia inacreditável de relações pessoais. Aos 49 anos, Hebe Romano é a mais nova conselheira do Cade. Assumiu o mandato em julho de 1999, com a indicação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Reginaldo de Castro. Ele é muito amigo do marido da relatora, o também advogado Mário Júlio Pereira. E, curiosamente, toda a intimidade que Hebe Romano deu a Aírton Soares, o suposto porta-voz do crime, nasceu da amizade do próprio Aírton Soares com seu marido, Mário Júlio, quando ambos eram assessores de Maurício Corrêa, então ministro da Justiça no governo Itamar Franco. Aliás, em seu depoimento à Polícia Federal, Hebe se referiu a Aírton Soares como "uma pessoa amiga da família".

Diante de tamanha complexidade, o delegado Luís Carlos Zubcov, responsável pelo inquérito na PF, enviou na semana passada ofício de apenas oito linhas ao ministro José Carlos Dias. Ao final do texto, sugeriu que o Cade estudasse a suspensão do julgamento sobre a AmBev, pois agora o conselho é que está sendo investigado. Recebeu o apoio integral de Dias. "O bom senso dirá o que Gesner tem que fazer", ironizou o ministro, espectador atento da crise que está tragando o Envie esta página para um amigo presidente do Cade. E Gesner sabe que ninguém levará a sério o maior julgamento da história do conselho enquanto a grave história de Hebe Romano não for passada a limpo.