Madrugada de uma quinta-feira em São Paulo. Enquanto aguarda o show dos Racionais MC’s, uma multidão de rappers usando bonés de beisebol, griffes americanas e tênis enormes assiste ao grupo de abertura, Apocalipse 16, que enlouquece a platéia. O som é pesado, com uma batida brutal. É difícil de acreditar, mas aquela rapaziada toda requebra ao som de um rap diferente, com o sobrenome gospel, gênero musical originariamente religioso, que acabou assimilando outros estilos tamanha a identificação de boa parcela da juventude com as canções cujas letras existem sob a égide de Cristo e outros temas de igreja. Embora não apareça na grande mídia nem toque nas principais FMs, o gospel é um fenômeno paralelo, musical e de atitude. Quem duvidar basta dar uma passada no sempre lotado bar paulistano Gospel Rock Café, um casarão de janelas panorâmicas, curiosa mistura de Hard Rock Café, casa de samba e aqueles bares frequentados por mauricinhos e patricinhas. Lá, a paixão musical se reveza em vários gêneros. Numa sexta-feira de maio, por exemplo, depois da meia-noite a banda Shema fazia a felicidade de loiras, morenas e ruivas que sacolejavam furiosamente ao som da axé gospel. No ar rolava a maior paquera. Parecia uma noite normal, não fosse a casa noturna um recinto onde ninguém fuma, bebe ou pensa em qualquer outro aditivo que não os benefícios do Evangelho.

Realmente os tempos são outros. Antes, no Brasil os discos de música gospel tinham venda restrita aos templos, livrarias evangélicas e lojas de artigos religiosos. Hoje, ganharam espaço nas lojas de departamentos onde disputam a atenção com católicos cantantes – liderados pela ala pop do padre Marcelo Rossi – e demais manifestações musicais de outras religiões. Até nas famosas Grandes Galerias, no centro de São Paulo, onde a moçada heavy metal se encontra e troca figurinhas sobre as últimas novidades no mundo dos altos decibéis, há um espaço comercial destinado aos evangélicos heavy. É a Sinai Hill, na qual a fita cassete Confinamento eterno, da banda white metal Antidemon, faz o maior sucesso sem nunca ter sido prensada em CD.

Apoiado num império de comunicações que tem como base suas principais igrejas, ou denominações no jargão evangélico, o gospel deixou de ser simplesmente música de louvor para ganhar um perfil de música de consumo. Atualmente há covers da Legião Urbana (banda Catedral) e de Gabriel O Pensador (Cesariel O Pregador), que, entre outros, se misturam às divas Marina de Oliveira, Cristina Mel, Cassiane e Aline Barros ou à banda de reggae Rhemajireh. Sem deixar de lado o pagode – pra God (Deus), eles brincam – do Divina Inspiração, grupo dos jogadores de futebol do Corinthians Marcelinho Carioca e Amaral.

 

Hinos – Diversidade, na verdade, faz parte da essência gospel. A palavra vem de God spell – palavra de Deus, em inglês – que deu nome ao renascimento religioso ocorrido nos Estados Unidos na época da Guerra Civil, na segunda metade do século passado. A partir daí, o som dos fiéis tornou-se aberto a influências – ao contrário dos spirituals, invariavelmente, hinos religiosos – e acabou originando artistas espetaculares do nível de Aretha Franklin, Al Green ou Ray Charles. A virada no Brasil aconteceu no final da década de 80, quando a extinta casa noturna paulistana Dama Xoc abriu espaço para grupos evangélicos de rock, atraindo multidões ao local. Foi neste período que nasceu a Gospel Records, da igreja Renascer, uma das três gravadoras que dominam o mercado brasileiro ao lado da Line Records, da Igreja Universal do Reino de Deus, e da MK Publicitá, criada em torno da cantora e empresária carioca Marina de Oliveira.

A exemplo das gravadoras multinacionais, as majors-gospel são braços de conglomerados da multimídia, entre eles a Rede Record. O poderio gospel, contudo, não pára por aí. No início de junho, a Gênesis Comunicação e Publicidade, que representa as igrejas Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular e Comunidade da Graça, assumiu o controle da Musical FM (105,7), de São Paulo, uma das únicas que transmitiam exclusivamente música popular brasileira. Alugada da Rede L&C de Mídia por quatro anos, a um custo estimado em R$ 3 milhões anuais, a rádio estreou em 1º de junho passado com uma programação totalmente evangélica, apresentando principalmente música americana.

Show – Dentro das igrejas como a Pedra Viva, nas reuniões de evangelização das sextas-feiras, dedicadas aos não-convertidos, as paredes tremem. Um dos pastores da igreja, Joaquim de Andrade, conta que são comuns os telefonemas de gente perguntando de quem é o show? "Aqui é uma igreja, não temos shows, mas cultos", responde ele. Cultos agitadíssimos, por sinal. É lá que se apresenta a banda Bani, composta por nove músicos e um coral de 30 vozes, que faz uma mistura do que há de melhor na música negra religiosa americana.

O ritmo dos negócios gospel acompanha o crescimento do número de fiéis, oito vezes maior que o demográfico. Segundo Ronaldo Barros, um guitarrista de estúdio, pai e empresário da cantora carioca Aline Barros, os três discos de sua filha já venderam mais de 500 mil cópias. Presença constante no Planeta Xuxa e nos especiais Criança esperança, da Rede Globo, o sucesso de Aline, 22 anos, extrapolou o mundo evangélico levando-a a ensaiar os primeiros passos de uma carreira internacional em Miami. Mais modestos, Juninho, Walter, Duca, P.G. e Jean, da banda de hard rock Oficina G3, surgida nos shows do Dama Xoc, avaliam que cada um de seus quatro álbuns vendeu em média 50 mil unidades. O grupo é um dos mais requisitados no Gospel Rock Café e anualmente cumpre uma agenda de mais de 80 shows, exceto os cultos. Mesmo assim o tecladista Jean, que pintou o cabelo de azul, diz que não entende por que a MTV não exibe os clipes da Oficina G3. "Tantos grupos defendem a maconha e nós não podemos aparecer falando bem de Jesus Cristo?", pergunta, indignado.

Drogas, aliás, são assunto recorrente nas letras da moçada gospel. Recorrente e de primeira preocupação. Antônio Carlos Batista, 32 anos, de tanto ver seus amigos drogados serem menosprezados na igreja Renascer, onde ajudou a criar a Christian Metal Force, resolveu fundar sua própria igreja. À frente da Zadoque – que significa retidão em hebraico – e tocando baixo na banda thrash metal Antidemon ao lado da mulher, Elke Garzoli (bateria), e de Kleber Albino Gonçalves (guitarra), o pastor metaleiro quer transferir sua igreja de um galpão no bairro paulistano do Morumbi para um espaço na área central da cidade. Quer abrigar outros conjuntos e atender aos necessitados. Serginho Madureira, 27 anos, do grupo de pagode gospel Judá, entende o trabalho de Batista. Ele já afundou na bebida e dormia na rua. Foi salvo ao ouvir o nome de Jesus berrado no meio de cuícas e tamborins.