O ensino universitário privado no Brasil é um mercado de 1.015 cursos com 1,5 milhão de estudantes, faturamento anual estimado em R$ 5 bilhões e planos para dobrar de tamanho nos próximos quatro anos. Só em 1999, a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE) autorizou a abertura de 517 novos cursos País afora, a grande maioria particulares. Esse acelerado aumento de vagas poderia ser apenas uma boa notícia aos milhões de estudantes que pretendem uma melhor qualificação para enfrentar um estreito e cada vez mais exigente mercado de trabalho. A concorrência nesse lucrativo negócio, porém, se transformou numa verdadeira guerra com troca de denúncias entre grandes empresas educacionais que atingem também o CNE e o Ministério da Educação. A Polícia Federal está investigando desde o ano passado uma denúncia de falsificação de pareceres. O caso veio à tona quando o próprio dono da Faculdade Elite de São Paulo foi à sede do CNE para saber se um processo dele já havia sido autorizado. Quando foi informado de que o relator do caso, o conselheiro Roberto Cláudio Bezerra, nem sequer tinha lido o processo, perdeu a paciência e abriu o jogo. "Eu já paguei por isso", protestou o empresário, que tinha nas mãos cópia de um parecer assinado pelo próprio Bezerra aprovando sua faculdade. O parecer foi comprado de um dos muitos escritórios em Brasília que montam processos para reitores de primeira viagem, alguns comandados por ex-integrantes do conselho. O MEC abriu inquérito administrativo, que concluiu que o parecer falso havia sido digitado dentro do CNE, onde também foi falsificada a assinatura do conselheiro. A investigação ainda não foi concluída.

Outra história estranha ocorreu em agosto do ano passado quando da renovação da autorização para o funcionamento do curso de Direito da Universidade de Guarulhos. Uma comissão de avaliação da Secretaria de Ensino Superior do MEC concluiu que a organização didático-pedagógica da universidade era deficiente e teria sugerido ao reitor Antonio Veronesi a contratação de um consultor para propor providências capazes de suprir as deficiências. Logo após a conversa, Veronesi foi procurado pelo consultor Edmundo Lima de Arruda Júnior que ofereceu seus serviços por R$ 100 mil. A Universidade de Guarulhos seria a 12ª instituição de ensino que, após receber consultoria de Arruda Júnior, receberia reconhecimento do MEC. Em 8 de dezembro, a Câmara de Educação Superior do CNE propôs "a instalação imediata de uma Comissão de Sindicância para averiguar as irregularidades cometidas pela Comissão de Avaliação para a renovação do reconhecimento do curso de Direito da Universidade de Guarulhos". Os avaliadores do MEC colocados sob suspeição trabalham na Comissão de Ensino Jurídico chefiada pelo professor Silvino Lopes, que está no Ministério desde a gestão do ministro Carlos Chiarelli no governo Fernando Collor. "Tudo indica que ali tem sérios problemas que estão a merecer uma investigação aprofundada", adverte um reitor de uma universidade privada.

Cabala
Silvino Lopes é subordinado do conselheiro Abílio Afonso Baeta Neves, homem de confiança do ministro Paulo Renato Souza e todo-poderoso comandante da Secretaria de Ensino Superior do MEC. ISTOÉ teve acesso a documentos e fitas de uma reunião do Conselho Nacional da Educação que mostram uma história no mínimo contraditória. Em 4 de outubro do ano passado, os 12 conselheiros do CNE decidiram que a Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) não poderia abrir cursos em Osasco sem antes cumprir a exigência legal de receber uma autorização do Ministério. "Fazer vestibular, ela pode fazer onde quiser – nos Estados Unidos, no Japão e até no subterrâneo do metrô de Paris. Agora, matricular para cursos lá é uma irregularidade, e nós não teremos nenhuma outra atitude a não ser informar que aquele vestibular é absolutamente ilegal e nulo", sentenciou Baeta, na ocasião. Tudo letra morta. A Uniban, que tem como dono o reitor Heitor Pinto, simplesmente ignorou a proibição e não foi punida, apesar de expressa recomendação do CNE nesse sentido.

Numa reviravolta surpreendente, em janeiro deste ano Baeta passou a aceitar como regular o comportamento da Uniban e entrou em conflito aberto com seu parecer anterior e os colegas conselheiros. Pela legislação atual, uma universidade, para abrir campus fora da sede, precisa apresentar projeto específico ao conselho – como se estivesse criando uma nova universidade. A Uniban argumentou que não precisava dessa licença prévia porque, ao reconhecer a instituição, em 1993, o CNE aceitou Osasco como uma das áreas de influência da Uniban. O CNE não concordou e pediu ao MEC a abertura de inquérito administrativo para investigar irregularidades praticadas pela Uniban e também a suspensão de todos os processos da instituição em tramitação. O caso Uniban virou o primeiro grande impasse entre o MEC e o CNE. O Ministério considerou as propostas do conselho "extremas e desproporcionais" e rejeitou o pedido, que agora será revisto por uma comissão especial. Para complicar a situação, donos de universidades privadas contaram a ISTOÉ que Baeta Neves extrapolou suas funções de funcionário público e cabalou votos para a chapa articulada por Heitor Pinto, que no ano passado disputou e perdeu a eleição da Associação Nacional de Universidades Privadas.

Se a Uniban mostra força no Ministério da Educação, outro que também chama a atenção pelas excelentes relações no CNE, o órgão que julga, emite pareceres e aprova todas as instituições de ensino superior do País, é João Carlos Di Gênio. No final do ano passado, por exemplo, a Uniban resolveu abrir um novo campus em São Paulo. Depois de muita negociação, feita em sigilo, ofereceu em dezembro R$ 8 milhões por um prédio no bairro do Jaguaré. Ali, seria aberto o campus Marginal Pinheiros. Seria. A Uniban negociava o imóvel quando foi informada pela corretora de que a propriedade não estava mais à venda. Tinha sido negociada com uma de suas maiores concorrentes, a Universidade Paulista (Unip), de Di Gênio, que rapidamente abriu lá um campus e realizou seu vestibular, oferecendo 1.500 vagas para nove cursos. Além do vendedor e do candidato a comprador, o negócio só era conhecido dentro do Conselho Nacional de Educação. "Isso é suspeito", atacou o reitor Heitor Pinto. "É uma desculpa de quem perdeu um negócio", contra-ataca Di Gênio, que afirma ter pago R$ 9 milhões pelo prédio pretendido pela Uniban.

Informação
Di Gênio, dono de um dos maiores conglomerados de ensino particular do País, que inclui ainda o grupo Objetivo, cultiva amizades em todos os poderes públicos – é, por exemplo, um dos mais assíduos na copa e cozinha do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Mesmo assim, não deixa de acompanhar pessoalmente tudo o que pode ajudar ou prejudicar suas empresas no Ministério da Educação. Em cima do lance, sabe todas as informações e os processos que passam pelo CNE. O mais antigo conselheiro da Câmara de Educação Superior é justamente um homem de sua total confiança: Yugo Okida, vice-reitor de Ensino de Graduação da Unip. Ele é o único conselheiro remanescente do extinto Conselho Federal de Educação (CFE), fechado no governo Itamar Franco depois que estouraram denúncias de venda de pareceres. "Não estou aqui para trabalhar contra ou a favor de ninguém. Estou aqui para defender a boa educação", diz Okida. "O que não pode é ligação escondida. A coisa aqui é às claras", endossa o próprio Di Gênio, um dos maiores defensores da política adotada na gestão Paulo Renato de abertura ampla, geral e irrestrita do mercado universitário. A Unip de Di Gênio tem cerca de 70 mil alunos espalhados em campus em São Paulo, Campinas, São José do Rio Preto, Barueri, Araçatuba, Sorocaba, Araraquara, Santos, São José dos Campos, Goiânia, Brasília e Manaus. Além do vínculo funcional com Yugo Okida, Di Gênio admite ter relações especiais com dois outros conselheiros do CNE: Lauro Ribas Zimmer e Artur Roquete. "Eu ligo para esses conselheiros e eles também me ligam. Somos amigos. Mas nunca pedi que votassem assim ou assado", justifica o dono da Unip.

Ex-reitor da Universidade Estácio de Sá, Zimmer mantém os laços com o antigo emprego. Recebe para fazer consultorias para a Estácio, uma das universidades que mais têm crescido nos últimos tempos. "Tenho amizade pessoal com quase todos os donos de escola deste país. Isso não influencia em nada", diz Zimmer. Como ele e Okida, outros conselheiros também continuam ligados a universidades privadas. São os casos de Carlos Alberto Serpa, que preside a Universidade Gama Filho, e de Hésio Cordeiro e Artur Roquete, que têm importantes cargos na Fundação Cesgranrio. Todos eles asseguram que não votam quando o processo envolve diretamente seus empregos. Mas se não vota os processos da Unip, Okida vota os da Uniban, que, com seus 30 mil alunos, anda nos calcanhares de sua universidade na briga entre as gigantes privadas de São Paulo. "Há uma guerra em São Paulo", reconhece o presidente do CNE, Éfrem Maranhão. "A câmara (de Educação Superior) se transformou numa reunião de lobbies, num fórum de partilha de interesses privados", denuncia o sociólogo José Arthur Gianotti, professor da USP, que defende uma renovação total da Câmara de Educação Superior. Gianotti renunciou em 1997 a sua vaga no CNE por discordar do processo de criação da Universidade Anhembi-Morumbi. "O conselho está cheio de testas-de-ferro do ensino pago, gente que serve aos interesses do MEC, e de lobistas das universidades privadas", reforça o presidente da União Nacional dos Estudantes, Wadson Ribeiro. Mesmo com todo esse discurso crítico, é curioso que na lista de entidades que apoiaram a indicação de Artur Roquete esteja a própria UNE.

"O CNE deveria ser composto por educadores, pensadores, gente vinculada ao ensino público. Mas virou ninho para empresários do ensino privado", avalia o professor João Antônio Felício, secretário-geral da CUT, outra entidade ouvida na hora da escolha dos conselheiros. "Há um nítido tratamento especial dado à Unip no conselho. Talvez porque não tenhamos nenhum conselheiro na nossa folha de pagamento", acusa o reitor Heitor Pinto, que há duas semanas também votou pela recondução de Zimmer para o CNE. É por essas e outras que até hoje o conselho só mandou fechar uma única instituição, no Rio. Em Brasília, uma faculdade, que chegou a sofrer intervenção do MEC, não teve suas atividades encerradas por pressão do seu padrinho, o então ministro da Justiça, Íris Rezende. Quando o senador ocupava o Ministério, em 1997, a Fiplac (Faculdades Integradas do Planalto Central) estava sob intervenção por irregularidades. Íris saiu em defesa da faculdade, conseguiu levantar a intervenção e impedir seu fechamento. A Fiplac, que tem sete cursos, fica no município goiano de Valparaíso, a 40 quilômetros de Brasília. São 2.500 alunos, nove em dez filhos da classe média do Plano Piloto. Uma mensalidade custa até R$ 750, caso do curso de Medicina Veterinária.

Inexperientes
Aberto há dois anos, o Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb) cresce a uma velocidade espantosa: já tem 12 cursos funcionando, soma três mil alunos e cobra uma mensalidade que, no caso do Direito, chega a R$ 570. O Iesb pertence a Eda Coutinho Barbosa Machado de Sousa, mulher do chefe de Gabinete do ministro Paulo Renato Souza, Edson Machado de Sousa. A mulher de Edson, uma professora aposentada que já trabalhou no MEC, juntou-se a dois empreendedores mato-grossenses e virou uma empresária do ensino. "Depois do Paulo Renato, houve um liberou geral no ensino superior. Mas isso gerou mais competição e o aluno passou a ter mais opções", acredita ela. Outro efeito colateral da expansão do ensino superior é a entrada no mercado de empresários sem experiência na área de educação. Um dos centros universitários criados no Rio, a Faculdade da Cidade, tem como proprietário Ronald Levinsohn, que em 1982 quebrou a corretora Delfim, então a maior do País, com 3,4 milhões de contas, deixando milhares de depositantes a ver navios. Ele foi indiciado em vários processos por gestão temerária. "Ninguém avalia vida pregressa de dono de faculdade. Não existe esse critério", justifica Raimundo Miranda, secretário-executivo do CNE. "Ninguém está fazendo folha corrida educa-cional", emenda a conselheira Silke Weber. "Estão sendo abertas empresas de ensino em que o objetivo educacional é secundário. Hoje muita gente com dinheiro para começar um negócio, em vez de abrir uma rede de restaurantes ou motéis, abre uma faculdade", aponta outro conselheiro do CNE, que pediu para não ser identificado. "Não vejo qual o benefício para a educação superior de ter uma faculdade em cada esquina. Ninguém está brigando pelo ensino, mas para lotar prédios", diz o reitor de uma faculdade de São Paulo. "E ganhar dinheiro", completa o professor Gianotti. "A rede privada, que é quem tem dinheiro para abrir faculdades, está fora de controle", acrescenta.

Esse boom no ensino superior obedece, segundo o MEC, a uma lógica matemática. O Plano Nacional de Educação, em tramitação no Congresso, estabelece que até 2006 o Brasil deve ter 30% de seus estudantes entre 18 e 24 anos frequentando os bancos das universidades. Hoje o Brasil tem 15%, o equivalente a 2,2 milhões de universitários. Na América do Sul, o Brasil fica em quinto lugar, atrás de países como Argentina, com 32% de universitários nessa faixa etária, e Chile, com 30%. Para o MEC, porém, esse crescimento vertiginoso não terá como consequência uma piora no nível do ensino superior. Seu sistema de avaliação, acredita o Ministério, será capaz de separar o joio do trigo. "Quem for bom fica. Quem for ruim fecha", aposta o secretário Baeta. É ver para crer.