Braços, pernas, olhos, ouvidos e músculos artificiais não poderiam estar mais em voga. São a principal linha de pesquisa de universidades e instituições científicas ao redor do mundo. No crepúsculo do milênio e da chamada década do cérebro, como foram batizados os anos 90, descobriu-se que é possível recuperar a audição, a visão e o tato com o implante de minúsculos chips de silício no corpo humano. As experiências da neuromedicina progridem com rapidez e trazem esperança a milhares de pessoas deficientes e paralíticas. O trabalho mais revelador nessa direção provou o que parecia impossível: mover uma prótese mecânica e tocar objetos usando apenas a força do desejo. Os autores são dois neurologistas, um deles o brasileiro Miguel Nicolelis, nascido na Bela Vista, bairro central de São Paulo, e atual morador da gélida Carolina do Norte (leia quadro à pág. 88). Em parceria com o americano John Chapin, da Pensilvânia, Nicolelis comprovou que animais de laboratório conseguem mover um braço biônico usando apenas os estímulos das células nervosas, que são enviadas do cérebro, por ondas de rádio, até a prótese. Primeiro os pesquisadores treinaram as cobaias a mover o braço robótico, apertar uma alavanca e ganhar como recompensa uma gotícula d’água. Para repetir o exercício, os animais enviavam sinais cerebrais para o braço biônico através de eletrodos plugados em seu cérebro. Usaram para isso os sinais elétricos emitidos pelas células do córtex, lâmina fina de substância cinzenta que contorna a superfície de cada hemisfério cerebral e controla as principais atividades ligadas à motricidade e à inteligência.

Dos cinco sentidos humanos, há grandes avanços no tato, mas as pesquisas mais promissoras são as da visão e da audição artificiais. Olfato e paladar são os projetos mais atrasados da neurociência. Nariz e língua com sensores embutidos servem para testar acidez e toxicidade de substâncias químicas, mas estão distantes de ser usados no corpo humano. Hoje existem pelo menos duas técnicas para implante de olho biônico em estudo no mundo. Uma delas ofereceu a um paciente de 62 anos o melhor dos presentes: voltar a enxergar. O caso do americano Jerry está descrito na edição de janeiro do Asaio Journal, publicação da Sociedade Americana de Órgãos Artificiais Internos, e comentado nas revistas científicas Nature e Lancet. Jerry passou quase três décadas nas trevas. Quando voltou a enxergar, pediu ao médico que guardasse seu nome no anonimato, mas não o milagre.

Em 1978, quatro anos depois de ficar cego em um acidente, Jerry implantou na cabeça vários eletrodos, conjunto de fios que conduz a corrente elétrica produzida pelo cérebro. Mas foi somente agora que a equipe de William Dobel-le, diretor do Instituto Dobelle, com sede em Nova York e laboratórios em Long Island, nos EUA, e em Zurique, na Suíça, conseguiu dar-lhe um olho artificial. O médico criou um modelo de óculos que traz embutidos uma minúscula câmera no lugar das lentes e alguns sensores ultrasom, para medir a distância de Jerry e os objetos ao seu redor.

Os óculos processam a imagem capturada pela câmera e os sensores calculam a distância num raio máximo de cinco metros, e enviam essas informações por um fio até um computador preso à cintura. O PC ajusta e sintoniza a imagem para depois enviá-la por outro cabo até o segundo computador. Esse outro PC fica preso no couro cabeludo de Jerry e transforma as imagens em impulsos elétricos, que são então enviados aos 68 eletrodos de platina implantados na camada superficial do cérebro, o córtex visual. Toda a parafernália eletrônica pesa 4,5 quilos, já com bateria, e tem o tamanho de um dicionário de bolso. Jerry agora consegue ver letras de cinco centímetros a um metro e meio de distância. Seus olhos biônicos também reconhecem formas e vultos. Parece pouco para quem está habituado à luz. "Para um cego, voltar a enxergar, mesmo que ainda mal, é como voltar a viver", diz Paulo Augusto Mello, vice-presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia.

Stevie Wonder
A outra técnica de implante artificial para reverter a cegueira é um chip embutido no lugar da retina, dentro do olho. Há pelo menos três centros americanos, dois alemães e um japonês pesquisando essa alternativa. Na Escola do Olho e Ouvido do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, cien-tistas implantaram dois microchips de silício no fundo do olho de alguns pacientes cegos. O primeiro chip é acionado pelos raios solares. O segundo recebe por ondas de rádio os sinais digitais capturados pela câmera presa nos óculos. E carrega os impulsos para as células ganglionárias da retina, responsáveis por transmitir a luz em sinais compreensíveis ao cérebro, que recebe a sensação da imagem. O implante substitui as células defeituosas da retina. Um dos primeiros famosos a se candidatar à cirurgia foi o cantor americano Stevie Wonder. Olhos biô-nicos semelhantes ao do MIT foram produzidos também nas universidades de Johns Hopkins e Harvard, nos EUA, e em Bonn, na Alemanha.

Em busca da audição, clínicas e empresas privadas americanas também já implantam experimentalmente chips no lugar das células defeituosas de uma área do ouvido interno chamada cóclea. O aparelho auditivo eletrônico faz as vezes de um amplificador de ondas sonoras instalado dentro do ouvido, que capta sons e os transforma em estímulo elétrico para agir sobre o nervo auditivo e as células cerebrais.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Dois anos atrás, a medicina tecnológica fez mais. Recuperou o tato e também a vontade de viver do hoteleiro escocês Campbell Airb. Ele foi a primeira pessoa no mundo a receber um braço eletromecânico, em Edimburgo, no Reino Unido. Movida a bateria comum de 12 volts, a prótese está ligada ao que restou do braço de Airb e aciona motores e engrenagens para mover o antebraço, o ombro, rotacionar o pulso, abrir e fechar a mão. É certo que Campbell Airb não poderá tocar piano. Mas sua vida melhorou muito depois que ele recuperou parte da mobilidade perdida aos 16 anos, quando seu braço foi amputado por causa de um tumor maligno.

Ciborgue
Operações como a de Jerry ou do inglês Airb tendem a se proliferar nos próximos anos. São histórias que lembram um antigo seriado de tevê, O Homem de seis milhões de dólares. Na série, o ator Lee Majors interpretava o coronel Steve Austin, piloto militar mutilado num acidente, que recebeu próteses eletrônicas para substituir as duas pernas, o braço direito e o olho esquerdo. Baseada no livro O Cyborg, de Martin Caidin, o seriado da década de 70 fez tamanho sucesso que gerou a Mulher biônica, Jaime Sommers, agente secreta com pernas eletrônicas e ouvido direito supersensitivo. As especulações fantasiosas da tevê mostravam implantes biônicos conectados diretamente ao cérebro. Ponto para a ficção científica! Sabia-se, desde aquela época, que estava no intrincado funcionamento neural a chave para unir biologia e eletrônica.

A neurociência progrediu muito desde o surgimento dos primeiros ciborgues fictícios. Hoje conhece-se mais o cérebro e sabe-se que ele funciona numa completa sintonia hormonal e nervosa. "Para mexer o polegar, a ordem parte do cérebro. São estímulos bioquímicos de neurotransmissores e condutores elétricos que terminam no músculo, onde acontece o movimento mecânico ou a ação", ensina o professor-titular Milberto Scaff, chefe do departamento de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Aristóteles
Nunca se investiu tanto em projetos de pesquisa sobre o cérebro como nos últimos dez anos. "Ainda assim, estamos longe de conhecer a linguagem de sinalização química que os neurô-nios usam para comunicar-se entre si", exemplifica o neurologista Paulo Henrique Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo. De qualquer forma, há muito caiu por terra a tese do filósofo grego Aristóteles, que dizia caber ao coração a função de centro da atividade mental humana. Infelizmente as experiências com próteses biônicas ainda não são acessíveis ao grande público. Muitas são experimentais e as que estão disponíveis, custam os olhos da cara porque envolvem grandes equipes e equipamentos de última geração. Estima-se que um implante de retina custe pelo menos US$ 300 mil.

Transplantes
Os cientistas agora avançaram na criação de órgãos e materiais artificiais para substituir veias, músculos, ossos e outros tecidos defeituosos do corpo. Um grupo da Universidade de Novo México, nos EUA, criou um músculo artificial que se expande e se contrai, como a musculatura humana. O tecido sintético pode auxiliar no tratamento de doenças cardíacas, eliminando alguns transplantes de coração. Estuda-se ainda uma forma de conectar esses músculos a tendões artificiais, recentemente aprovados pelo governo americano para uso em seres humanos.

Uma experiência realmente excêntrica é a do inglês Kevin Warwick, professor de cibernética da Universidade de Reading, no Reino Unido. Disposto a estudar os sinais elétricos que circulam por seu corpo, Warwick planeja implantar um chip no braço esquerdo ainda este ano. Pretende romper o limite entre o homem e o computador ao conectar o chip de seu braço a um PC. Ele e a mulher, Irena, usarão chips para capturar o desempenho do sistema nervoso exposto a diferentes sensações. Como isso afetará o organismo? O inglês Kevin Warwick está disposto a arriscar o próprio corpo – e o da mulher – para descobrir. "E se uma das pessoas ficar estimulada sexualmente?", pergunta-se Warwick. A resposta, só no futuro.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias