O otimismo voltou. Os capitais internacionais estão entrando nas Bolsas brasileiras, a taxa de juros continua sua trajetória de queda, a Fundação Getúlio Vargas chega a registrar deflação nos preços e, após um período voltado para os problemas econômicos nacionais, o presidente Fernando Henrique Cardoso retomou suas viagens pelo Exterior. Tudo isso no Brasil oficial, onde repercute o esforço do governo em demonstrar que a situação está sob controle. No Brasil real, porém, a crise é visível a olho nu. Começa na produção, cada vez mais claudicante, passa pelas quilométricas filas de desempregados e atinge as prateleiras das lojas e dos supermercados, onde mesmo os consumidores com dinheiro no bolso não hesitam em trocar produtos de marcas mais caras por similares de segunda linha. A tendência é tão acentuada que uma campanha encabeçada pela Associação Brasileira de Agências de Publicidade está investindo R$ 200 milhões para que o empresariado não deixe de anunciar.

A face mais perversa da crise tem nome e sobrenome, embora muitas vezes se perca no anonimato das estatísticas. Com 17 milhões de habitantes, a região metropolitana de São Paulo alcançou o espantoso índice de 20,3% da população economicamente ativa desempregada. Moradora da cidade de Barueri, Elza Francisca dos Santos, 28 anos, está entre 1,788 milhão de pessoas sem emprego contabilizadas pela Fundação Seade-Dieese. "Aceito qualquer coisa, pois já tive até de trancar a matrícula na faculdade de Administração", conta Elza, na fila de inscrição para vagas oferecidas no Centro de Solidariedade ao Trabalhador, da Força Sindical. Desde janeiro, 347 mil pessoas bateram às portas do centro, atrás de um posto de trabalho, de um curso de qualificação ou do seguro-desemprego. Isso sem contar os 50 mil que, em meados de maio, esperaram até 19 horas para se inscrever em uma frente de limpeza pública da cidade de São Paulo, em troca de um salário mínimo e uma cesta básica.

Com o currículo espalhado pelos quatro cantos, José Carlos de Mello Junior, 38 anos, já desistiu de ficar em filas. "A gente tem de se virar", diz. Gerente de uma agência bancária por quase 18 anos, ele perdeu o posto quando a instituição que trabalhava mudou para mãos estrangeiras, há dois anos. Agora, Junior vende sanduíches naturais, circulando pela cidade em um maltratado Fiat Uno. "Não dá para esperar uma nova colocação de braços cruzados, pois tenho duas filhas pequenas para criar", explica. Como caiu na economia informal, Junior nem sequer consta do índice divulgado recentemente pelo IBGE, que indica uma taxa de 8,02% de desemprego nas seis maiores regiões metropolitanas do País.

Promessas Neste índice também não entrou o caldeireiro Valdenito Almeida, o "Carioca", 44 anos, que trabalhava na Nordon, uma empresa instalada na cidade de Santo André há 43 anos, que produzia maquinário para outras fábricas. "A Nordon já teve 1.470 empregados, mas fechou no começo do ano, pois não suportou a abertura sem limites das importações", conta Carioca, que escapou temporariamente da demissão por ter estabilidade sindical. "Meus colegas estão todos largados por aí", lamenta.

É como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. A queda na produção tira operários das linhas de montagem. Suas famílias param de comprar nas vendas, nos bares, nos shoppings. O comércio sente o baque. Pelas cidades, aumenta o número de placas de "passo o ponto". Depois de 86 anos integrando o cotidiano dos paulistanos, o Mappin está à beira da bancarrota. Com 52 anos na praça, a rede de eletrodomésticos G. Aronson fechou as portas no começo do mês. Episódios como esse são a senha para a volta ao começo, pois significam mais desempregados na rua. "Temos de torcer para o mercado melhorar. Dos cinco dedinhos que o presidente Fernando Henrique apontou antes das eleições, não sobrou nenhum para nós", reclama o reparador de veículos Vanderlei Mistrão, 30 anos, referindo-se às promessas de campanha de FHC. Há nove anos na Ford, Mistrão está entre os 1.200 empregados da montadora que receberam uma carta de demissão às vésperas do Natal, mas conseguiram entrar em regime de licença remunerada até o final de setembro. "Se precisar, vamos voltar com nossos filhos para a porta da fábrica", diz sua mulher, Elenir, 23 anos, lembrando que a atuação das famílias nas negociações entre a montadora, o governo e o sindicato foi fundamental para que os operários não ficassem desamparados de vez.

Aliada à crise, é justamente a sensação de desamparo que está aguçando a religiosidade de muitas pessoas. Recém-chegado da Bahia, Evandro Flor Cruz, 20 anos, passou a tarde de seu aniversário na Igreja de São Judas Tadeu, em São Paulo. Atrás do altar, aos pés de uma imagem do santo das causas desesperadas, Cruz pediu ajuda para conseguir um emprego. "Tenho fé de que vou conseguir", acredita o rapaz. "Minha cidade não tem recurso nenhum." No santuário, os religiosos atestam que o emprego, tema da campanha da fraternidade deste ano, anda cada vez mais presente nas orações e confissões dos fiéis. "Estamos passando um período difícil, mas é a classe média que se desespera mais", afirma o padre Onivaldo Dyna. "O nosso pobre é tão sofrido que acaba tendo mais traquejo na vida."

O padre tem razão, mas as cenas visíveis da crise revelam que, na batalha para vencer os percalços, muitas vezes a fronteira do bom senso é ultrapassada. O apresentador de tevê Raul Gil, da Rede Record, sentiu o drama na pele ao lançar um concurso para montar uma réplica mirim do conjunto É o Tchan! "Quando vi mais de duas mil pessoas na fila, me deu o maior desespero", conta o apresentador. "Não quero fazer sucesso em cima da dor dos outros." Entre as garotas que tentavam ganhar o papel da Sheila loura estava Tatiane, seis anos, que mora em São Roque e tomou três ônibus para chegar ao estúdio. "O sacrifício vale a pena, pois ela pode ser contratada", sonha a mãe, Regina Vieira, casada com um pedreiro, com quem tem cinco filhos.

Sem parar Mesmo entre aqueles que já suaram a camisa por décadas a fio, há muitos que enfrentam o desafio da sobrevivência no cotidiano. É o caso do aposentado Alcides Alves, 74 anos, que começou a trabalhar ainda menino, na roça, nas imediações da cidade paulista de Santa Cruz do Rio Pardo. Aos 26 anos, mudou-se para a capital, onde trabalhou ininterruptamente até oito anos atrás, quando se aposentou no comércio, passando a receber mensalmente R$ 130. "Tenho de catar lata porque o que ganho mal dá para comer", resigna-se Alcides. "O pior é que minha mulher é cardíaca e gasta quase R$ 50 de remédio por mês." De janeiro até maio, aliás, os preços dos medicamentos subiram, em média, 7,57%, quase o dobro da inflação. Este mês, subiram de novo, alguns até 3%. Com as latas que cata diariamente e amassa antes de vender, Alcides Alves aumenta sua renda mensal em R$ 25. Parece até uma ironia, diante de comentários de FHC de que o brasileiro tem obsessão por parar de trabalhar.