A visibilidade era quase zero. Os ventos fortes de 70 quilômetros por hora formavam gigantescas ondas de quatro metros de altura que pareciam se fundir ao tenebroso céu cinzento que cobria o gelado Mar de Barents, Noroeste da Rússia, acima do Círculo Polar Ártico. Silencioso, rompia a parede aquática, agitada no fundo por correntes marítimas, um dos mais modernos submarinos nucleares do mundo, o robusto Kursk – nome do local, na Rússia, onde se deu a maior batalha de tanques da história, durante a Segunda Guerra Mundial. Pesando quase 14 mil toneladas e com capacidade para transportar 24 mísseis nucleares, além dos torpedos, o submarino levava a bordo 118 tripulantes da Marinha russa a uma velocidade de 20 nós (37 quilômetros por hora). Esse caçador de porta-aviões trazia homens jovens e treinados, que realizavam manobras militares sofisticadas num local onde até hoje há resquícios da guerra fria. De repente, a gigantesca máquina metálica perdeu o controle e submergiu, encalhando a 107 metros de profundidade no inferno gelado. “O acidente aconteceu depressa como um raio”, comparou Igor Dygalo, porta-voz da Marinha russa.

No minuto em que o Kursk afundou, não muito distante dali, sonares americanos e noruegueses captaram o ruído de um forte estrondo, como se o mar estivesse sendo partido. Imediatamente, a água, na temperatura de 4ºC, inundou os tubos de lançamento dos torpedos e invadiu outros compartimentos. Como um avião dando um rasante, o submarino foi para o fundo do mar, chocando-se com o solo e finalmente parando inclinado, em um ângulo de 20 graus. É possível que a explosão de um dos torpedos tenha rompido um dos compartimentos na proa (parte frontal) do submarino. Para evitar vazamentos, os dois reatores nucleares foram desligados, deixando a belonave com pouca ou nenhuma energia elétrica. Produtos químicos foram liberados para absorver o gás carbônico que poderia sufocar a tripulação. Com pouquíssismo oxigênio, num ambiente em que a temperatura pode chegar a zero grau, pode-se imaginar o horror claustrofóbico vivido pelos marinheiros, mesmo sabendo tratar-se de pessoas especialmente treinadas para tais circunstâncias. Afinal, é preciso muito sangue-frio para manter a calma sabendo que alguns de seus companheiros morreram afogados e congelados.

Os marinheiros dizem que a vida num submarino é “um acidente constantemente controlado”. Quando se descontrola, é o colapso. O ultramoderno Kursk, equipado com rádios de baixa frequência, telefones subaquáticos, equipamentos de emissão de sinais e bóias que poderiam avisar outros navios do desastre, ficou órfão da tecnologia no momento do acidente. Três dias depois da submersão catastrófica, o mais primitivo dos sinais foi captado por equipes de resgate. Do casco, ouviu-se uma sequência do bom e velho Código Morse. Para quem está no escuro, os ruídos ficavam mais palpáveis que os objetos e os poucos sobreviventes tentavam seu último chamado. Um chamado que se silenciou aos poucos, até parar completamente um dia depois. Estariam todos mortos? Ou haveria sobreviventes que estariam colocando em prática a técnica do silêncio, permanecendo deitados, com terríveis dores de cabeça, para poupar o oxigênio restante? Uma certa dormência poderia também ter atingido os marinheiros sobreviventes no abismo aquático. Afinal, o sono é o prelúdio da morte, como dizia William Shakespeare.

As cenas dramáticas descritas acima não saíram de um livro de Tom Clancy. O relato é a hipótese mais plausível do que pode ter acontecido no sábado 12 com um submarino russo da classe Oscar II (segundo a classificação da Otan), fazendo com que o mundo prendesse a respiração para acompanhar cada capítulo do que está prestes a se transformar numa catástrofe. Como se tratava de um artefato movido a energia nuclear, a primeira coisa que veio à mente foi o temor de um “efeito Chernobyl”. Por isso, assim que soube do acidente, a Noruega colocou-se em estado de alerta, temendo que um vazamento de radioatividade do reator nuclear do submarino pudesse se espalhar pelo país. Mas essa possibilidade parece remota, já que foi descartada até por entidades ambientalistas, como a norueguesa fundação Bellona, organização de grande prestígio nos assuntos de poluição nuclear naquela região. “Um reator militar sempre tem muito mais proteção do que um reator civil, já que foi feito para aguentar impacto de armas e, assim, pode suportar um acidente desse tipo”, disse a ISTOÉ o vice-almirante Ronaldo Fiúza de Castro, comandante do 8º Distrito Naval, sediado em São Paulo.

Mas, como num romance de Tom Clancy, muitas informações desencontradas apareceram nessa trágica história. A primeira delas é que, segundo o serviço secreto francês, os primeiros sinais do acidente teriam sido captados já na sexta-feira 11 e não no sábado. Inicialmente, os russos também disseram que houve uma colisão “com um objeto estranho” – possivelmente um submarino americano – e não a explosão no compartimento de torpedos. Depois, Moscou acabou admitindo que houve pelo menos uma explosão. Como nos bons tempos da guerra fria, nem o número de tripulantes era preciso. Inicialmente, falou-se que estavam entre 107 e 116; depois, os russos admitiram que eles eram 118. A polêmica não ficou só nos dados do naufrágio, mas também na postura adotada pelas autoridades do Kremlin. Até a quarta-feira 16, o governo russo havia recusado ajuda internacional, principalmente da Otan, a inimiga dos tempos da guerra fria que ainda faz manobras militares naquela inóspita região.

GUERRA FRIA – A demora de Moscou em aceitar a mãozinha dos ocidentais ocorreu pelo velho receio russo de que os estrangeiros descubram seus segredos militares. O local onde aconteceu o acidente também ajuda a explicar a atitude errática das autoridades russas. “A península de Kola é o coração da defesa russa”, lembra o almirante Fiúza de Castro. “Na época da guerra fria, os soviéticos treinavam muito naquela área e os americanos levavam seus submarinos para observar a movimentação da Marinha soviética. Era uma brincadeira de gato e rato, houve muitos acidentes e colisões de submarinos. E eles continuam brincando”, diz Fiúza. O almirante discorda dos que afirmam que a frota russa está obsoleta. “Uma Marinha que tem um submarino desses, com apenas cinco anos de uso, com marinheiros bem treinados, profissionais que até os americanos respeitam, não pode ser considerada obsoleta.” Para Fiúza, o sucateamento da Marinha russa foi um fato localizado. “Eles voltaram a ser uma Marinha defensiva e, assim, reduziram seu arsenal de ataque.”

 

As equipes de salvamento russas realizaram quatro operações de resgate de alto risco em cinco dias. Todas falharam. Na quarta-feira 16, o presidente Vladimir Putin finalmente rompeu seu silêncio. “A situação está muito difícil, crítica mesmo”, admitiu ele. “Meu primeiro impulso foi voar para Severomorsk, mas compreendi que todos devem fazer seu trabalho sem interferir no dos especialistas”. O Kremlin acabou pedindo socorro às Marinhas britânica e norueguesa. Os parentes dos marinheiros russos estavam ansiosos por notícias e se revoltaram contra o governo pela ausência de informações. Até quinta-feira 17, poucos nomes da tripulação haviam sido divulgados, entre eles o do comandante Genady Lyachin, 45 anos. A identidade de todos os tripulantes só seria conhecida porque foi publicada pelo jornal Pravda, que teria comprado a informação de um oficial.

A angústia tomou conta do gélido porto de Murmansk, a 48 quilômetros entre a fronteira russa com a Noruega. Em Kursk, Valentina Staroseltseva relatou em lágrimas a última carta do filho Dmitri. “Mãe, a tripulação é ótima. Somos uma grande família.” Como Valentina, muitos se orgulham de ter um filho na Marinha. Assim, ao subestimar a opinião pública nesse episódio, Putin viu arranhada sua tão cultivada reputação de líder decidido. “O destino dos 118 marinheiros, que já estão mortos ou estão morrendo sufocados, está provocando maior impacto popular do que a morte de 2.500 soldados na Chechênia”, comparou o ativista de Direitos Humanos Andrei Mironov.

Os marinheiros são seres supersticiosos. Eles acreditam que o mar é algo que não deve ser temido, mas também não deve ser desafiado. O mar deve ser respeitado. Por isso, em todas as Marinhas do mundo, qualquer pessoa que embarque num submarino tem de ser “batizada”, recebendo o nome de um peixe para deixar claro que não está perturbando os domínios de Netuno. Mas o senhor dos mares, cultuado em prosa e verso em idos tempos, anda meio esquecido ultimamente. Seu reino tem sido cada vez mais devassado. Talvez ele também tenha lá seus desígnios insondáveis.

 

“Pesadelo de um submarinista”

 

Em 1998, ele chamou a atenção das Marinhas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental) ao “afundar”, com o submarino brasileiro Tamoio, o porta-aviões espanhol Príncipe de Astúrias, durante manobras militares no Atlântico Norte, na costa de Portugal. No mesmo ano, durante operações da Marinha brasileira entre o Rio de Janeiro e Vitória, acompanhadas por uma equipe de ISTOÉ durante uma semana a bordo do Tamoio, o capitão de mar-e-guerra Paulo Oliveira voltou a mostrar a eficiência do treinamento de sua equipe e as qualidades deste submarino, um projeto alemão fabricado no Brasil, ao afundar, em combate simulado, os principais navios da frota de superfície que era sua adversária. Hoje, servindo no Ministério da Defesa, o comandante Paulo comentou, chocado, o destino de seus colegas submarinistas russos.

ISTOÉ – Como o sr. analisa o desastre ocorrido com o Kursk?
Paulo Oliveira – É o maior pesadelo de um submarinista. Um acidente com inundação de parte ou da totalidade de um submarino é sempre uma situação crítica. E se torna ainda pior se, como no caso do Kursk, o submarino não consegue se manter flutuando e vai para o fundo.

ISTOÉ – Nesses casos, como a tripulação deve proceder?
Oliveira – Só existem três modos de sair de um submarino afundado. Através de “sinos” de resgate, de minissubmarinos ou então nadando para a superfície, um a um, operação que demandaria muitas horas. No caso do Kursk, a profundidade do mar e especialmente a temperatura da água, perto de zero grau, inviabilizaram esta última opção.

ISTOÉ – Quais as chances reais de haver sobreviventes?
Oliveira – Depende da gravidade do acidente. Com a invasão da água pela proa, devem ter ocorridos incêndios, liberação de gases tóxicos etc. Tudo contribui para reduzir o oxigênio disponível a bordo. O número de sobreviventes está ainda relacionado com o fechamento dos compartimentos estanques a bordo. Se foi possível isolar a popa, quem estava no local pode ter escapado. Pelas informações divulgadas, o afundamento foi muito rápido.

ISTOÉ – O Brasil dispõe de equipamentos de salvamento?
Oliveira – Sim. O navio Felinto Perry tem todas as condições de fazer um salvamento no fundo do mar.

Eduardo Hollanda

De Júlio Verne a Sean Connery

O cinema já perpetrou nas telas vários filmes nos quais o submarino estava entre suas estrelas de efeito. Talvez o maior ícone cinematográfico do gênero seja 20.000 léguas submarinas, de 1954, uma deliciosa aventura baseada no livro homônimo de Júlio Verne, que emocionou a molecada de então numa torcida pelo capitão Nemo, interpretado por James Mason, o homem à frente do portentoso Nautilus. Há também o clássico A raposa do mar (1957), que mostra a disputa entre o nazista Von Stolberg (Curd Jürgens) e o americano Murell (Robert Mitchum). Estas obras acabaram inspirando várias outras fitas, entre elas Caçada ao outubro vermelho, com Sean Connery na pele do almirante soviético Marko Ramius tentando fugir para os EUA. Há também a cultuada série televisiva Viagem ao fundo do mar, dos anos 60. Até os Beatles entraram na onda marítima com o desenho animado Submarino amarelo, de 1968.

Cheio de toques surrealistas e traços psicodélicos, o enredo
nonsense decolou nos cinemas graças à trilha sonora composta pela banda de Liverpool. Recentemente estreou nos Estados Unidos a fita U-571, com Harvey Keitel.
Ambientado na Segunda Guerra, conta os apuros de uma tripulação ianque presa num submarino nazista.

Apoenan Rodrigues