Meu primeiro contato com a maldade real, aquela que vivia fora dos limites seguros dos contos de fadas, foi com a repercussão, na época, do caso da Fera da Penha. Eu tinha meus quatro anos, a mesma idade da menina assassinada com um tiro na cabeça e posteriormente queimada pela amante do pai. As babás não falavam de outra coisa, abandonando as fotonovelas no banco da praça. Naíde, com o rádio ligado nas alturas, estendia os lençóis no quarador e me lançava faíscas verdes, pois ela perdera um olho quando mocinha e usava uma prótese muito antiga de um verde intenso que capturava a atenção de seu interlocutor de maneira definitiva, de forma que não se falava com Naíde; falava-se com o olho de vidro do qual, eu agora percebo, ela sentia muito orgulho. Nunca registrei o rosto da assassina, mas a lembrança da Fera da Penha está para sempre associada ao olho de vidro de Naíde, que gostava de Miltinho e de Altemar Dutra. Naqueles verões do passado, ela ia jogando a água de anil sobre o algodão estendido e me dizia, de forma implacável, que a criança podia ter sido eu. “Um tiro na cabeça e, depois, o monstro ainda tacou fogo!” Foi ali, naquele terraço perdido na Ilha do Governador, que eu descobri que os homens podiam ser maus, além do imaginável.

De modo geral, começamos a entender o conceito de maldade muito cedo na jornada. Cada vez mais cedo, numa sociedade midiática, e talvez por isso, tantos de nós voltem a experimentar a fragilidade da primeira infância, ao deparar-se com casos como o da menina Isabella, assassinada em São Paulo. Não se fala de outra coisa e eu, confesso, também não. Todos aguardamos o desfecho da história, para que possamos reassumir nossos papéis de adultos e tocar a vida, um pouco mais doloridos e bastante mais alarmados.

Aprendemos, desde cedo, que o mal é castigado, assim nos afirmaram os cavaleiros de todas as ordens, príncipes, bruxos e reis, e a criança que há em nós é outra vez aviltada, quando vê, por exemplo, que Paula Thomaz e Guilherme de Pádua, assassinos confessos, que deram 18 tesouradas em Daniela Perez, estão por aí, certamente acreditando, como Guilherme afirmou na época, que “Daniela morreu na hora em que tinha de morrer!”

Nosso Código Penal precisa ser revisto. Precisamos voltar a acreditar na justiça e recuperar um pouco de auto-estima para deixar que a criança de quatro anos durma em paz. Depois, seguimos em frente, para além do futuro. Há algo de muito errado com uma sociedade incapaz de se rever. Ou incapaz de se ver, como aquela esmeralda falsa que Naíde usava no lugar do olho, já faz muito tempo.

Cada vez mais cedo, numa sociedade midiática, e talvez por isso, tantos de nós voltem a experimentar a fragilidade da primeira infância

Miguel Falabella é ator, dramaturgo e diretor e cineasta. Está em cartaz no Rio com o musical Os produtores

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