16/08/2000 - 10:00
Muito antes de se tornar o presidente da Souza Cruz, em janeiro de 1996, Flávio de Andrade já sofria patrulhamento. Quando um de seus três filhos ainda era pequeno, foi obrigado a responder a uma pergunta atravessada. O pequeno queria saber como o pai podia trabalhar numa fábrica de cigarros, que tanto mal causa à saúde das pessoas. A resposta foi simples e direta: “É um trabalho como qualquer outro e precisamos de dinheiro para pagar a mensalidade da sua escola.” Com um “inimigo” assim na própria casa, Andrade aprendeu cedo a lidar com essa questão. Quando no dia 9 a Câmara dos Deputados aprovou, em votação simbólica, a emenda do tucano Jutahy Júnior (da Bahia) que proíbe a propaganda de cigarro nos meios de comunicação, o executivo não se abalou. Em lugar de se comportar de forma passiva, defendeu a criação de uma lei federal que proíba a venda de cigarros para menores. Andrade acha que o governo deveria ser mais combativo em relação à sonegação fiscal e, nos dias que antecederam a derrota do lobby da indústria de cigarros, chegou a trocar farpas com o ministro da Saúde, José Serra. “Duvido que proibir a propaganda de cigarro seja uma prioridade do Planalto”, disse. O projeto enviado ao Congresso “seria coisa de apenas uma pessoa, com objetivos políticos. Temos eleições pela frente”, dispara o empresário.
Nesta entrevista a ISTOÉ, Andrade preferiu amenizar os ataques. Acuada de um lado pela campanha antitabagista e de outro pelo aumento vertiginoso da informalidade, a gigantesca Souza Cruz anda queimando muito alcatrão e nicotina para sair da berlinda. A empresa, que produz anualmente 1,5 bilhão de cigarros, enfrenta um inimigo quase invisível, porém mais poderoso do que a Philip Morris. “Nosso maior concorrente é a ilegalidade”, diz Andrade. Aos 52 anos, o executivo admite que fumar é um risco, mas continua pitando seu Hollywood diariamente. Ponto para a Souza Cruz, porque seus três últimos antecessores eram fumantes passivos, ou melhor, não fumavam. Apesar de viciado assumido, Andrade se orgulha de passar nos exames médicos aos quais se submete todos os anos. O bom desempenho físico é acompanhado por uma retórica afiada. “Sempre discuto na clínica para tirarem a pergunta sobre cigarro. É preconceituosa”, acusa Andrade é o melhor garoto-propaganda que a Souza Cruz poderia ter. Não se importa em ser fotografado fumando, joga peteca, corre diariamente e ainda disputa corridas profissionais de kart e automobilismo. Na sede da empresa, no centro do Rio, recebeu a equipe de ISTOÉ para a seguinte entrevista:
Fumar é um ato que envolve risco, portanto deveria ser decidido por adultos e não por crianças. É por isso que somos favoráveis a uma legislação que proíba a venda de cigarros para menores de 18 anos. Um dos países onde se fuma mais – sobretudo entre homens – é o Japão e lá o nível de doenças cardíacas e respiratórias é um dos menores do mundo. Isso prova que, apesar dos riscos envolvidos no ato de fumar, outros fatores devem ser considerados antes de afirmar que o cigarro sozinho faz mal à saúde. Nos Estados Unidos, o número de fumantes vem caindo e as doenças coronarianas continuam crescendo. Não podemos esquecer que japoneses e americanos lidam de forma diferente com a alimentação e outras questões ligadas à saúde.
Acredito que haja outras prioridades que a população gostaria de ver resolvidas. Não acredito que a proibição da publicidade de cigarro seja tão importante. Existem outras questões dentro da própria discussão do tabaco e da saúde pública que deveriam merecer mais atenção. Como a proibição para menores adquirirem cigarros nos pontos-de-venda. Isso é proibido por leis municipais ou estaduais, mas não existe uma lei federal cuidando do assunto. Outra questão seria a aprovação de uma lei que limitasse o porcentual de alcatrão e nicotina nos cigarros.
Nos Estados Unidos não existe limitação ou qualquer lei nesse sentido. Nos últimos 20 anos, o Brasil iniciou um programa de redução de alcatrão e nicotina. Hoje, nossos cigarros têm 13 miligramas de alcatrão e 1 miligrama de nicotina. Na Europa, o limite é de 12 miligramas de alcatrão.
Não queremos desviar o assunto. Mas o fato é que nem o ministro José Serra nem ninguém do Ministério procurou a Associação Brasileira da Indústria de Fumo (Abifumo) para discutir o tema. Se tivesse havido um diálogo entre as partes, ainda que isso significasse restrições à indústria, seria aprovado um projeto mais completo e a população seria mais beneficiada. Eu acredito no diálogo.
Não sei responder a esta pergunta. Só sei que, se tivesse acontecido, teríamos tratado de um outro ponto que eu considero muito relevante, a ilegalidade no setor.
Hoje, 35% dos cigarros consumidos no País são ilegais, fruto de contrabando ou de falsificação. O governo deixa de arrecadar anualmente entre R$ 1,2 bilhão e R$ 1,3 bilhão. Esse dinheiro não chega às mãos da população nem sob a forma de benefícios ligados à saúde, nem como benefícios à educação. Boa parte do cigarro vendido no País não está sendo controlada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como ocorre com todo o resto da indústria. São cerca de 300 marcas diferentes vendidas no mercado contra 100 outras produzidas legalmente. Se não bastasse a venda ilegal desses cigarros, muitos deles têm defensivos agrícolas e até produtos organoclorados banidos do País. Com certeza a restrição à publicidade de cigarros não terá condições de controlar isso. Hoje, o maior concorrente da Souza Cruz não é a Philip Morris, mas a informalidade do setor.
De cada cigarro vendido no País, o consumidor paga 73,5% de imposto. Os Estados Unidos, que praticam o imposto mais baixo do mundo, cobram entre 29% e 33%. Não estamos incluindo aí o Paraguai, é claro. Lá, o imposto é em torno de 16%. O Brasil está entre os países que praticam as maiores taxas tributárias, perdendo apenas para os países escandinavos. Isso explica o aparecimento e crescimento desta ilegalidade. Quanto maior a carga tributária, maior a ilegalidade. Os quatro setores da economia que mais sofrem com a ilegalidade são os de cigarros, combustíveis, cervejas e refrigerantes. A sonegação nesses quatro setores soma R$ 4 bilhões. É uma falácia pensar que, aumentando os impostos, o consumo de cigarro cai. Ao contrário. Essa política só faz aumentar a ilegalidade.
A Souza Cruz é uma das cinco maiores empresas deste país e, quanto à contribuição para os cofres públicos, ela é a maior empresa nacional. Não consigo entender como uma empresa que opera legalmente, respeitando as leis estabelecidas no País, pode ser comparada a traficantes. Vamos continuar atuando como sempre fizemos, com transparência e ética.
Hoje, dois terços da população mundial não são fumantes. Imagine o que é pôr essas pessoas acuando o um terço restante. Criou-se um ambiente de pressão muito forte. Ao mesmo tempo, a população tem pouquíssimo conhecimento científico sob certos aspectos. Todo mundo já ouviu falar, por exemplo, de fumante passivo. Existem hoje cerca de 85 estudos epidemiológicos feitos nos Estados Unidos, na Europa e Ásia que não conseguiram mostrar os efeitos nocivos da fumaça do cigarro contra a saúde do fumante passivo. Mesmo assim, continua em pauta sem uma relação provada de causa e efeito. Mas por que se continua falando no assunto? Talvez porque, ao introduzir esse novo conceito, se colocou a maior parte da população fazendo pressão contra a parcela menor.
Acho que é uma estratégia clara. Foi nos anos 70 que começaram, nos Estados Unidos, as primeiras pressões contra a utilização da mídia pela indústria de cigarros. Paralelamente, começaram a aparecer as primeiras cláusulas de advertência. Essas duas iniciativas não foram suficientes para inibir o consumo. Então, na década de 80 divulgou-se a idéia do fumante passivo. A tentativa era criar uma estratégia de pressão ou, como eu costumo chamar, uma estratégia da discriminação. Paradoxalmente, esse fenômeno começou pelos Estados Unidos, o país que mais luta pela liberdade de expressão e contra preconceitos raciais e sexuais.
Não considero essas pesquisas equivocadas. Numa democracia, as empresas têm o direito de contratar pesquisas. Ou não? Os estudos tinham por objetivo minimizar, na opinião pública, o impacto das declarações sobre os males causados pelo cigarro à saúde dos não-fumantes. Se esse era o objetivo, não foi atingido porque não houve divulgação. É bom lembrar que até a Organização Mundial da Saúde, no relatório bianual de 1996/97, concluiu que risco abaixo de 2% é pequeno e difícil de ser interpretado. Até hoje ninguém conseguiu demonstrar a correlação entre fumaça ambiental do cigarro e doenças pulmonares entre não-fumantes.
Investimos 5% da nossa receita líquida em eventos culturais e propaganda. Se o projeto no Senado for aprovado do jeito que está, será uma perda lastimável para o País. Não vamos falar ainda sobre o impacto dessa decisão, mas com certeza afetará, no futuro, projetos como o do Free Jazz e patrocínios na área de automobilismo. Há 20 anos éramos um dos maiores investidores publicitários do País; hoje, estamos em 27º lugar. Se é verdade que a publicidade aumenta o tamanho do mercado, então o presidente Flávio de Andrade deveria ser demitido porque nos últimos 20 anos reduzimos nossos investimentos nessa área.
Não há uma diminuição do consumo do ponto de vista da demanda. O que há é uma diminuição da oferta formal. Como a produção caiu devido à concorrência com a informalidade, fechamos quatro mil empregos. Não posso deixar de admitir que as campanhas anti-tabagistas surtem efeito na cabeça do consumidor, sobretudo do jovem.
Há um desconhecimento generalizado do público em relação ao nosso código de ética. Sempre tivemos uma conduta que nos impede de convidar atores com menos de 21 anos ou que aparentem menos de 25 anos. E também não utilizamos mídia direcionada para adolescentes. Hoje, está terminantemente proibido veicular anúncios na tevê antes das 21 horas. Nós só o fazemos a partir das 21h30. Não fazemos publicidade para jovens. Isso é o que eu chamo de mote para restringir a atuação da indústria.
Aqui no Brasil existem 22 ações contra a Souza Cruz. Em todas elas já ganhamos em primeira ou segunda instância. Há cerca de um ano e meio, nos Estados Unidos, a indústria de cigarros perdeu uma ação que estipulou um valor de US$ 250 bilhões a serem pagos em 25 anos. Um pequeno grupo de advogados vai embolsar US$ 500 milhões ao ano. Temos de admitir que poucos negócios no mundo são tão rentáveis como esse. Acredito que esse movimento faça parte de uma indústria de indenização que já está chegando no Brasil.
Eu admito que esse cafezinho poderia estar muito mais quente, porque ficaria muito mais gostoso.