Uma investigação da Receita Federal e do Ministério Público no Tocantins está revelando que a negociata com o dinheiro do Orçamento não acabou. Em agosto do ano passado, durante uma série de batidas em cinco empreiteiras em Palmas, técnicos da Receita e agentes da Polícia Federal apreenderam uma farta documentação que pode comprometer pelo menos cinco prefeitos e quatro deputados federais da bancada do Estado, além de outros políticos locais. Em uma das empresas, a Talismã, os fiscais encontraram anotações e planilhas que dão conta do que estaria acontecendo nos últimos quatro anos com parte do dinheiro das emendas orçadas por deputados do Tocantins para construção de esgotos e casas populares nas cidades pobres do Estado: "doações" a prefeitos, ajuda a políticos, distribuição de passagens de ônibus e até fornecimento de carros para transporte de eleitores na campanha de 1998. No escritório de uma outra empreiteira, a SOS, os fiscais encontraram projetos de obras para prefeituras. Pela papelada, o proprietário Antônio Carlos de Souza fazia mais do que preparar a documentação que os prefeitos te-riam de levar à Caixa Econômica Federal para receber o dinheiro da obra. O canhoto de um talão de cheques, por exemplo, dedica ao deputado federal Darci Coelho (PFL) um socorro de R$ 78 mil. Uma listagem extraída de um dos computadores apreendidos associa uma lista de políticos locais a valores em dinheiro. Insistentemente procurado por ISTOÉ, Darci não respondeu as ligações.

As investigações no Tocantins já desencadearam um inquérito na Polícia Federal e a quebra do sigilo bancário de 19 construtoras e de quatro empreiteiros. O Ministério Público avalia que pelo menos seis delas têm algum tipo de ligação entre si. Juntas, amealharam 30 contratos com a Caixa, no valor de R$ 2,6 milhões, em recursos orçamentários. São contratos de no máximo R$ 100 mil cada um, feitos para atender às populações mais carentes na área de habitação e saneamento. Quem fazia a detalhada contabilidade dos gastos com as obras e com os políticos era o empreiteiro Valdomiro de Castilhos, um dos donos da Talismã, que em 10 de janeiro deste ano também teve os sigilos bancário e fiscal quebrados pela Justiça. Tudo isso faz os procuradores suspeitarem da existência de um esquema que envolveria fraude nas licitações, emissão de notas frias, desvio de dinheiro público e toma-lá-dá-cá com prefeitos e deputados federais. Enquanto o Ministério Público está rastreando como foram aplicados os R$ 2,6 milhões liberados a fundo perdido, diligências da Polícia Federal estão checando se as obras foram mesmo executadas. O advogado Francisco Barros de Lima, que representa as cinco empreiteiras, confirma os favores concedidos aos políticos e diz que as "doações" são bancadas pelo lucro das empresas e não pelo dinheiro do contribuinte. "Todas as casas foram construídas. Às vezes, os prefeitos pediam coisas a mais, fora do projeto, e eles atendiam. Talvez para agradar", tenta justificar. "Eles faziam registros dessas operações, mas isso não tem valor legal, servem apenas para controle interno das empresas."

Negociatas
As investigações no Tocantins colocam em xeque uma das principais medidas saneadoras adotadas pelo Congresso depois que a CPI do Orçamento, em 1993, descobriu que parlamentares, os chamados anões, cobravam propinas para assegurar a aprovação de emendas milionárias. Desde 1995, ficou estabelecido que cada deputado e senador tem uma cota orçamentária de R$ 1,5 milhão a ser aplicada em até 20 obras de seu interesse. Imaginou-se que a fixação significaria o fim do balcão. Não foi. Pior é que na elaboração do Orçamento há espaço também para negociatas entre políticos, dirigentes e empreiteiros nas médias e grandes obras. Nesse caso, o furo está nas chamadas emendas de bancada, uma lista de até 15 obras que os parlamentares de cada Estado podem incluir no Orçamento anual. Essas emendas teoricamente deveriam seguir um rito rigoroso. Para entrar no Orçamento, têm que ser aprovadas por 3/4 dos parlamentares do Estado. Se a bancada é pequena, cada parlamentar pode ficar com uma ou mais obras e toca as negociações segundo seus interesses. Funcionam na prática como as milionárias emendas individuais do passado.

Há inclusive empreiteiras que se tornaram especialistas na execução de obras financiadas pelo Orçamento. Tradicionalmente, a baiana OAS, que pertence à família do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), é uma delas. Outra construtora baiana, a Gautama, também é uma das favoritas nas obras premiadas com emendas. Em Alagoas, por exemplo, ela toca sozinha duas das maio-res obras do governo do Estado. Criada em 1995, a empresa é novata no mundo das obras públicas, mas seus donos, não. O sócio majoritário da empreiteira, com 70% das cotas, é o engenheiro Zuleido Soares de Veras, ex-alto executivo da OAS. Durante o governo Fernando Collor, Zuleido era o encarregado dos negócios com a chamada República de Alagoas. Deixou o grupo OAS para montar seu próprio empreendimento e manteve a estratégia de priorizar os contatos em Brasília. "Cheguei a pensar que ele era um deputado baiano. Sempre está no mesmo vôo que à terças-feiras traz os parlamentares da Bahia a Brasília", diz o deputado Marcelo Deda (PT-SE). A estratégia de Zuleido Veras parece eficiente. Os dois contratos alagoanos, que somam quase R$ 200 milhões, correspondem à construção de uma rede de adutoras no interior do Estado e o sistema de drenagem de um bairro industrial de Maceió, o Tabuleiro do Martins. A Gautama abocanhou os dois contratos em 1998, no governo de Manoel Gomes de Barros (PTB), o Mano. O deputado federal Olavo Calheiros (PMDB-AL), conhecido como Olavinho, conduziu as duas licitações quando era o secretário de Infra-estrutura do Estado.

Superfaturamento
Esse sucesso da Gautama pode até ser resultado da competência de um engenheiro experiente, mas o atual governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PSB) encontrou mais do que isso nas duas obras. "Os contratos estavam superfaturados, com preços acima dos praticados pelo mercado", acusa o governador. Com base em uma tabela mais realista, Lessa diz que arrancou um acordo que ampliou em 30% os serviços previstos nos dois projetos sem desembolsar um tostão a mais. Uma Comissão Especial de Inquérito da Câmara de Maceió criada para investigar a denúncia de superfaturamento na obra na capital alagoana reforça a acusação de Lessa. Em seu relatório final, a CEI acusa o governo do Estado de sabotar a apuração ao se negar a enviar dados essenciais para uma avaliação sobre o custo da obra. "Mesmo à base de informações esparsas, a Comissão do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura concluiu que, pelo menos em alguns itens, aos quais foi possível ter acesso, houve de fato diferenças significativas entre os preços de mercado e os preços apresentados pela empresa vencedora do projeto sugerindo a prática de superfaturamento", afirma o relatório. "É mentira do governador. A obra não está superfaturada e ele não fez nenhuma renegociação do contrato", rebate Olavo Calheiros. "Essa denúncia é uma exploração política, porque a licitação foi feita às vésperas das eleições."

Acordão
Obras da Gautama em outros Estados também estão sendo questionadas. A empresa está concluindo, por exemplo, a sede do Tribunal de Justiça do Amazonas, um contrato que consumiu R$ 20 milhões nos últimos dois anos e foi licitado pelo governo do Estado. Em dezembro do ano passado, o Tribunal de Contas da União mandou a empreiteira devolver ao governo R$ 425 mil cobrados irregularmente. Na ampliação de um sistema de adutoras em Sergipe – um contrato de R$ 36 milhões -, os técnicos do TCU também apontam indícios de irregularidades na licitação que, se confirmados, poderão causar um prejuízo de R$ 5,5 milhões aos cofres do Estado. Procurado por ISTOÉ, Zuleido Veras preferiu não dar nenhuma explicação sobre as denúncias contra sua empresa. Mesmo nas grandes bancadas a aprovação das emendas coletivas acaba passando por um acordão. O líder do PL, deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP), conseguiu um feito invejável no Orçamento deste ano: emplacou uma emenda de R$ 3,5 milhões para a construção de um anel viá-rio em Mogi das Cruzes. Trata-se de uma obra de pai para filho. Literalmente. O contrato será administrado pelo pai do deputado, Valdemar Costa Júnior, atual prefeito de Mogi e candidato à reeleição. A obra, licitada pelo próprio Valdemar Costa Júnior, em 1992, é tocada pela OAS. Os 22 votos da bancada paulista que asseguraram a aprovação da emenda de Costa Neto também viabilizaram o dinheiro para as obras defendidas pelos deputados Rubens Furlan (PFL), Maluly Netto (PFL), Alberto Mourão (PMDB) e Jorge Tadeu Mudalen (PPB). Ao se defender, o líder do PL não deixa de confirmar a tese do toma-lá-dá-cá. "Quando o Furlan e o Mourão vieram pedir apoio para emendas deles, é claro que tratei de assegurar o voto deles para a minha emenda. Mas eu trabalhei duro e fui de gabinete em gabinete convencer a bancada sobre a importância da obra."

Conto dos anões

Os anões do Orçamento foram descobertos em outubro de 1993, a partir das denúncias do economista José Carlos Alves dos Santos, integrante da quadrilha e chefe da assessoria técnica da Comissão do Orçamento do Congresso. As revelações detonaram uma CPI que durante três meses esmiuçou o esquema de propinas montado por deputados que atuavam na comissão. Foram 18 acusados. Seis foram cassados, oito absolvidos e quatro preferiram renunciar para fugir da punição e da inegibilidade. O rastreamento das contas bancárias acabou derrubando o presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (PMDB), o líder do PMDB, deputado Genebaldo Corrêa (BA) e o deputado baiano João Alves, o capo do esquema. Alves lavava o dinheiro comprando cartões de loteria premiados. Havia dois esquemas. No primeiro, parlamentares faziam emendas remetendo dinheiro para entidades filantrópicas ligadas a parentes e laranjas. Mas o principal eram os acertos com grandes empreiteiras para a inclusão de verbas orçamentárias para grandes obras, em troca de polpudas comissões.