desembarcou no Brasil, no sábado 22, para ser a principal atração internacional do MorumbiFashion, evento que agita a moda brasileira esta semana em São Paulo. A estampa da moça, de tez resplandecente de tão preta, mostra que nem só de cabelos loiros e peles alvas se faz a beleza do século XXI. No badalado calendário Pirelli de 1999, os traços de Alek Wek foram fotografados por Herb Hitts e apontados como ícones da estética do futuro. “Uma garota como ela não seria considerada bonita nos anos 70 ou 80”, avalia a ex-top model Iman, hoje mais conhecida como senhora David Bowie. Junto com Naomi Campbell e Tyra Banks, Iman foi uma das poucas mulheres negras a atingir o Olimpo da cena fashion internacional na última década. “Mas nossa aparência é mais ocidental. Alek Wek não. Ela é como uma adorável escultura africana”, elogia a ex-modelo.

O sucesso planetário da deusa sudanesa – que explodiu no circuito fashion há quatro anos, após ser descoberta por uma fotógrafa em um mercado de Londres –, porém, simboliza um movimento coletivo que vai muito além das passarelas: o orgulho de ser negro. No Brasil, onde a população negra e parda gira em torno de 71 milhões, essa onda também está ganhando força. Cansados de chorar pelos cantos por ganhar pouco no emprego e serem maltratados pelo garçom no restaurante, os negros querem marcar posição – desta vez, pela autovalorização. Esta tendência está presente na música, na mídia, nas artes e em uma vasta literatura lançada nos últimos meses. Até o mercado dá mostras de que a raça não vai mais ficar de lado. A Estrela acaba de anunciar que no início de fevereiro as crianças de todo o Brasil poderão brincar com a Susi Olodum, a primeira boneca negra do País. “Estudos mostraram que o público infantil queria uma versão negra da boneca”, diz Aires José Fernandes, diretor de marketing da empresa. A auto-estima negra é apontada hoje como o ponto de partida para o combate à discriminação, ao preconceito e à desigualdade racial. Para lutar por melhores condições de vida e se fazer respeitar pela sociedade, o negro precisa antes gostar de si mesmo. “O negro brasileiro está descobrindo sua identidade. Isso significa dar valor a sua condição e acreditar que ele pode contribuir de forma positiva para a sociedade”, afirma Vera Benedito, socióloga da Universidade de São Paulo, que há 20 anos estuda a história dos descendentes africanos no País. Negra, a professora mora hoje nos Estados Unidos, onde prepara sua tese de doutorado. O tema: como vivem as comunidades negras em diversos lugares do mundo. “Ao contrário do que se pensa, a valorização da negritude não surgiu apenas nos EUA. Ela ocorreu também no Brasil, mas em muitos casos foi incorporada à cultura popular e perdeu sua origem”, afirma Vera Benedito. “Um exemplo: na passagem de ano, todos se vestem de branco, mas poucos sabem que essa tradição vem do candomblé.”

Em contrapartida, a socióloga aponta o hip-hop, que engloba a música rap, a dança break e o grafite, nascido nos guetos negros dos Estados Unidos, como o mais recente movimento que elevou o orgulho das raízes africanas em muitos países. “Hoje se vêem jovens de 15 anos que se afirmam negros e não se permitem ser maltratados. Parte dessa atitude é passada nas letras do rap”, diz Vera. “O rap é cantado por pessoas de todas as raças, nas favelas e em danceterias. Isso eleva a auto-estima negra”, afirma a pedagoga Helena Pires, coordenadora da editora Selo Negro. Criada no ano passado, já lançou seis livros voltados para a comunidade negra. Um deles é o Rap e educação, rap é educação. A obra descreve experiências de educadores que utilizam o rap como incentivo pedagógico nas salas de aula. O rapper Thaíde, há 15 anos na estrada, também quer conscientizar a juventude em suas letras. Ele faz isso por meio de versos como os presentes em seu último CD: “…a importância de ser negro por inteiro, reconhecendo seu valor, e por favor, respeitando seu irmão mais claro que está a seu lado… seja escuro, mas seja escuro e verdadeiro, afro-brasileiro…” Para Thaíde, negro é mais que um tom de pele. “Negritude é uma questão de sangue”, diz ele. “Quem se diz afro-brasileiro fala de toda uma origem e de uma história.” O rapper reclama que em sua certidão de nascimento consta “cor parda”. “Quero mudar isso, pois não sou filho de pardal. Acho que a moçada hoje está mais ciente de seus direitos para encarar a realidade sem abaixar a cabeça.”

A estudante paulistana Daniela Cristina Benedito, 15 anos, não deixa que a chamem de neguinha. “Eu nunca chamei um branco de branquinho, então não tenho por que ser chamada de neguinha. Quem me ensinou isso foi minha mãe”, diz ela. Em casa, Daniela tenta saber mais de sua história. “Um dia a gente ficou um tempão na sala com livros e atlas tentando descobrir se tinha sido minha tataravó ou bisavó que tinha nascido na época dos escravos”, lembra. “Se não tivéssemos sido arrancados da África, metade da história do Brasil não teria acontecido”, diz Daniela, que, embora ache alguns meninos brancos interessantes, gostaria de namorar um garoto negro. “É mais bonito.” A adolescente é um dos 21 jovens negros que integram o projeto Geração 21, iniciativa da Fundação BankBoston que está completando um ano. A fundação vai tutelar a educação desses jovens até a graduação em um curso superior. “A alma do projeto é formar líderes para a comunidade negra brasileira. Para isso, buscamos educar e valorizar a auto-estima desses jovens por meio de aulas sobre a história e a cultura da raça”, explica Reinaldo Bulgareli, coordenador do projeto. “Eles participam de palestras e encontros nos quais conhecem manifestações e pessoas que simbolizam o sucesso e o orgulho de ser negro.”

Um bom espelho para negros em busca de uma injeção de amor-próprio chegará às livrarias em fevereiro. Trata-se do livro A cor do sucesso – oito razões de orgulho para a comunidade afro-brasileira, lançamento da editora Gente, que reúne em forma de entrevista a trajetória de oito negros bem-sucedidos. Um deles é Jair Rodrigues, o ex-engraxate e ex-alfaiate que se transformou em uma das maiores vozes da MPB. “Por incrível que pareça, minha cor nunca foi empecilho. Acho que Deus está me livrando desta, pois o dia que eu tiver um problema de racismo eu viro a mesa e rodo a baiana”, afirma Jair. “Eu me rasgo todo”, completa ele, pai de Jairzinho, 24 anos, e Luciana, 21, ambos músicos. Mas seus filhos, frutos de seu casamento com Claudine, já passaram por situações nas quais a auto-estima étnica foi posta à prova. “Mesmo sendo contra a paranóia que diz que tudo é racismo, já presenciei inúmeras situações de discriminação”, lembra Luciana. “Nesses casos, sou a primeira a falar e a procurar fazer justiça. Meus pais me ensinaram a ter orgulho da raça.”
É a nova geração que leva o velho Jair a pensar sobre sua condição. “Um dia meu filho disse que um professor o elogiou na escola chamando-o de negro de alma branca. Achei péssimo. Desde quando alma tem cor? Eu sempre gostei do tom da minha, jamais daria uma de Michael Jackson”, afirma o cantor. Em outro capítulo do livro está vertida a história da cantora Elza Soares, que, em outubro último, foi eleita pela BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. “Tenho confiança no meu taco e me faço respeitar. Sei a cor do meu caráter. Já fui nocauteada várias vezes, mas frito peixe de olho no gato”, diz Elza. “ Se não tivemos a chance de estudar, precisamos ter um dicionário e ler bons livros.”

As psicólogas Marilza Martins e Maria Lúcia da Silva sabem do que Elza Soares está falando. Elas fazem parte do Amma – Psique e Negritude, uma entidade formada por negros que busca superar as sequelas emocionais pela terapia. “A maior parte dos nossos clientes é negra. Eles se sentem mais à vontade para contar casos de discriminação porque nós sabemos o que é isso”, conta Lúcia. As duas psicólogas são co-autoras do livro Gostando mais de nós mesmos, de auto-ajuda para negros, lançado em dezembro passado também pela editora Gente. Nele, elas respondem dúvidas comuns na comunidade negra, muitas vezes baseadas em experiências próprias. Lúcia viveu, por exemplo, o dilema de a família não querer que ela namorasse um negro. “A intenção era me proteger. O pensamento era que se eu tivesse um marido branco não seria discriminada”, afirma Lúcia. “Isso acontece quando o negro tem baixa auto-estima. Como a sociedade não o vê com bons olhos, ele também tem a tendência de não se valorizar”, afirma a psicóloga Marilza Martins.

Fronteira
Mas a comunidade negra brasileira ainda tem um longo caminho a percorrer. Até porque não há dúvidas de que no Brasil há milhares de “Alek Weks” que não têm chance no mercado da moda. “Estamos em um processo inicial que deve ser incentivado em instituições como a escola, que é a principal fronteira para a melhora da auto-estima do jovem negro”, diz a socióloga Vera Benedito. Ela ressalta também a importância da televisão. “Hoje todo mundo está valorizando sua origem italiana, em função da novela Terra nostra, mas lá o negro continua aparecendo como o submisso, o empregado, o escravo. Hoje uma criança negra, perguntada sobre a novela, pode ficar encabulada porque ela não quer ser identificada como o personagem Tiziu, que é um apelido negativo.” Pelo andar da carruagem, porém, mesmo sem a ajuda do ensino oficial e da Rede Globo, é muito provável que cada vez mais negros brasileiros possam assinar depoimentos emocionantes como o do ator Antônio Pitanga, 60 anos, secretário estadual da Ação Social, Esporte e Lazer do Rio de Janeiro, publicado ao lado.

O resgate de uma cultura

Até os 11 anos, quando me chamavam de negro eu ia ao desespero. Mas depois disso percebi que era negro, bonito, inteligente e capaz. Foi assim que elevei minha auto-estima. Cada negro vencedor traz com ele multidões. Minha auto-estima também se apóia em olhar para aqueles que chegaram a algum ponto, como Benedita da Silva, Grande Otelo, Paulinho da Viola, Zumbi dos Palmares ou o consagrado geógrafo baiano Milton Santos.

Cresci aprendendo o que é dignidade e respeito aos mais velhos, e passo isso aos meus filhos. Não trabalhamos o ego ao nível do egoísmo, conseguimos ter a compreensão do coletivo. Minha coragem e força crescem na medida em que minha família e raça também crescem. O Brasil será um país de Primeiro Mundo quando realmente resgatar seu referencial cultural que está aqui dentro: os índios e os negros.

A leitura de nossas referências foi apagada pelos colonizadores.

Minha auto-estima vem do desejo de ter a consciência de que o espaço construído por meus antepassados também me pertence. Cabe a nós retirar essa venda dos olhos e dizer: isso aqui é meu. Vou estudar, matar um leão por dia. Este país perdeu muito de sua auto-estima e referência cultural nessas centenas de anos. Nossa capacidade para o esporte, a dança e a música é muito grande. Os negros que vieram para o Brasil trouxeram uma cultura.

Está na hora de se reescrever a história deste país na virada dos 500 anos, inserindo o que aconteceu aos afro-brasileiros. Não temos ódio. Nossa característica é a alegria e o olhar generoso. Nem por isso somos inocentes úteis, mas sim pessoas capazes. Não há vitória quando a maioria de meu povo está oprimida. Não quero medidas compensatórias, mas o que é de direito: o nosso lugar.”