Os políticos de esquerda latino-americanos parecem ser vítimas de um velho estigma. De tanto esperar sua vez para chegar ao poder pelo voto, os de passado socialista, comunista, ou outras feições da velha esquerda acabam transformando-se em social-democratas. O Chile, a melhor fornada do modelo do neoliberalismo econômico latino-americano, viveu o milagre da transformação no domingo 16. Os chilenos retornaram às urnas para ratificar a escolha que apertadamente haviam feito no primeiro turno. Elegeram Ricardo Lagos, 61 anos, como presidente, o primeiro a vestir as cores do socialismo desde o governo de Salvador Allende (1970-1973). Por uma vantagem mais larga do que a obtida no primeiro turno, ainda assim mínima (280 mil votos), Lagos venceu o candidato da direita, Joaquin Lavín, um populista que pregava a resolução dos problemas cotidianos dos cidadãos à margem dos partidos políticos. Em quase nada o presidente eleito lembra a figura de Allende, o condutor das reformas populares, deposto por um golpe militar que iniciou a ditadura do general Augusto Pinochet. Lagos considera-se um líder renovado, mais próximo da Terceira Via inglesa do premiê Tony Blair do que da velha esquerda dogmática. "Representamos uma visão moderna, madura e progressista de como podemos introduzir a justiça social no continente", afirmou o novo presidente chileno a ISTOÉ. No fundo, pelas circunstâncias que a política chilena impõe, com um país rachado ao meio entre a direita e esquerda e com várias das feridas da ditadura militar ainda abertas, o socialista Lagos não terá muito como governar se não der uma guinada mais à direita – anos-luz de distância do governo Allende.

"Para governar, Lagos dependerá de sua capacidade de negociação com o Congresso, sua coalizão e a oposição", afirma o cientista político Guillermo Holzmann, da Universidade do Chile, uma das mais respeitadas do país. Pela primeira vez desde o fim da ditadura, o presidente não pertence às fileiras da Democracia-Cristã (DC) dos presidentes Patricio Aylwin e Eduardo Frei. Espera-se uma disputa interna para saber o peso de cada partido no governo. Além da DC, a coalizão que elegeu Lagos é formada por vários partidos, incluindo o que ele criou, o Partido pela Democracia, que abarcou ex-dissidentes socialistas para o plebiscito do "Não" que impediu a continuação de Pinochet no poder em 1988.

No Congresso, o problema será enfrentar um sistema político com pouca representatividade, uma herança dos tempos duros do regime fardado. Embora a Câmara dos Deputados seja inteiramente eleita pelo voto, o Senado está repleto de políticos na condição de parlamentares vitalícios – o próprio Pinochet é um deles. Qualquer decisão mais polêmica é estancada no Senado. Lagos prometeu acabar com essa aberração. Talvez ele tenha de esperar a renovação do Congresso no final de 2001 para mudar a Constituição pinochetista que, por exemplo, impede o presidente de nomear livremente os comandantes militares. Outro problema a ser enfrentado é o bloco de oposição. Nunca um candidato da direita obteve tantos votos. Lavín afirmou estar disposto a colaborar com o novo presidente, mas ninguém esconde que ele deseja dar novos vôos no futuro. Em outubro, haverá eleições municipais e ele deve apresentar-se como candidato.

Conotação social

Espera-se que a grande diferença do governo de Lagos seja a maior conotação social nas ações de governo. Sua missão é levar os frutos econômicos para os chilenos que foram excluídos do processo de reformas do país nos últimos anos. Já anunciou que sua primeira medida será a criação de um seguro para baixar o índice de desemprego, que bate na casa dos 10%, o dobro da época de bonança. Em 1999, o Chile foi atacado pelos efeitos da crise asiática. Para o programa de Lagos produzir o efeito prometido, os analistas calculam que a economia chilena terá de crescer 7% neste ano, uma taxa dentro da média histórica, mas muito superior ao desempenho do ano passado, quando o PIB recuou 1%, levando o país à primeira recessão em quase duas décadas.

Por duas vezes, Lagos teve a chance de ser presidente. Na primeira, em 1989, abriu espaço para seu professor de faculdade, Patrício Aylwin. Na segunda, em 1994, perdeu a oportunidade para um sobrenome, Frei, filho do presidente de mesmo nome que antecedeu Allende. No ano passado, quando ganhou as primárias contra o candidato da Democracia Cristã, Andrés Zaldívar, Lagos se tornou, de longe, o favorito à eleição. Mas temerosos com a vitória de um socialista, os empresários formaram filas para doar dinheiro à candidatura de Lavín, que fez uma campanha milionária a ponto de os chilenos estarem discutindo hoje uma lei sobre gastos de campanha. O favoritismo de Lagos ruiu e os chilenos ficaram surpresos quando os dois candidatos saíram das urnas no primeiro turno com uma diferença de 31 mil votos num eleitorado de oito milhões de votantes. Lagos teve de moderar o discurso. "Serei o terceiro candidato da Concertação (a coalizão que governa desde a saída de Pinochet), e não o primeiro socialista depois de Allende", repetiu durante a campanha. Lagos teve de afinar o discurso ao do adversário, prometendo cuidar dos problemas das pessoas. Além disso, abarcou como chefe da campanha uma mulher, Soledad Alvear, uma militante da DC, ministra da Justiça de Frei e popularíssima por reformas feitas no Judiciário.

Com a posse em março, Lagos terá certamente de enfrentar o fantasma do general Pinochet. Embora fora do governo há dez anos e ausente da política desde que foi detido há 15 meses em Londres, Pinochet, mesmo doente e envelhecido, ainda divide ao meio a opinião pública chilena. Apesar de que tenha virado tema de campanha apenas na semana anterior à eleição, com a decisão britânica de não permitir o julgamento na Espanha por razões humanitárias e possibilitar a volta do ex-ditador ao Chile, Lagos espera que a Justiça do seu país o julgue. O mais lógico é que o processo seja acelerado para não prejudicar o início do governo de Lagos, embora ele até tenha motivos para querer vingança. Em 1986, ficou 19 dias preso como suposto autor intelectual do atentado contra Pinochet, quando morreram cinco guarda-costas.

Sem revanchismo, o próprio Lagos considera que o Chile melhorou muito com as reformas liberalizantes, tocadas pela mão-de-ferro do general Pinochet. É um dos países latino-americanos com melhores indicadores econômicos e sociais na região. "Não haverá grandes mudanças na política econômica", afirma a cientista política Paz Milet, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), por onde Lagos militou junto com o presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso. "Mas ele deverá colocar na agenda temas de direitos humanos e desaparecidos durante o regime militar." Não será a primeira vez que colocará o dedo na ferida em assuntos como terrorismo, tortura e genocídio promovidos pela ditadura. Num programa ao vivo em 1988, apontou o dedo indicador diante das câmaras denunciando as aspirações de Pinochet de perpetuar-se no poder. O dedo acusador virou símbolo de luta dos chilenos contra a ditadura.

A direita se civiliza

Pode parecer coisa de marketeiro. Mas o fato de o candidato de direita derrotado, Joaquín Lavín, ter ido cumprimentar o vitorioso Ricardo Lagos na noite de domingo 16, antes mesmo de se conhecerem os resultados oficiais, sinaliza uma ruptura com o padrão de confronto político que o Chile conheceu dramaticamente nas últimas três décadas.

Veja-se, por exemplo, a eleição do socialista Salvador Allende, eleito por uma coalizão de esquerda em 4 de setembro de 1970. Ele teve apenas 39 mil votos de vantagem sobre o conservador Jorge Alessandri e precisou assinar um acordo com a Democracia Cristã (DC) para ter seu nome referendado na Câmara dos Deputados. Esse acordo tornava o presidente praticamente refém da DC, que, ao final de dois anos, conspirou com os militares na esperança de ocupar o lugar de Allende.

O presidente, que prometia levar o Chile ao socialismo pela via democrática, enfrentou, além da oposição de centro-direita, o fogo cruzado de sua própria coalizão, dividida entre a extrema esquerda que pretendia fazer a revolução na marra e os moderados que queriam reformas dentro da lei. Foram precisos 17 anos de ditadura militar para que a DC e a esquerda reaprendessem a fazer política. O gesto de Lavín – além da neutralização política de Pinochet – parece indicar que também a direita chilena chegou à idade da razão.