A reconciliação simbólica da Alemanha com as vítimas do trabalho escravo da tirania nazista durou menos de um mês. No apagar das luzes do século XX e 54 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o chanceler (primeiro-ministro) Gerhard Schröder anunciara a criação de um fundo equivalente a R$ 10 bilhões. "É uma pequena contribuição" para minorar os sofrimentos de um milhão de sobreviventes, discursou ele durante a assinatura em Berlim de um acordo com os EUA, que praticamente obrigaram Schröder a dar esse passo. No documento, Washington promete empenhar-se para que as empresas alemãs não sejam processadas nos tribunais americanos.

Mas no último dia 10, sem a pompa presente nos eventos oficiais, membros de oito entidades que representam sobreviventes abandonaram irritados o Ministério das Finanças em Bonn. A audiência que marcaria a participação dos atingidos na elaboração do anteprojeto de lei, a ser enviado ao Bundestag (Parlamento), na prática não aconteceu. "Só fomos ouvidos porque existe essa obrigação. Mas não se discutiu nada", criticou Lothar Evers, da Associação dos Perseguidos pelo nazismo. Razões para isso não faltam. O esboço que foi apresentado na reunião ministerial da quarta-feira 19 não foi alterado. Schröder escolheu um cronograma puxado: fechar um acordo com os líderes do Partido Verde, sócio na coligação governista, e remeter o projeto ao Parlamento já no início de fevereiro.

"Assim não será possível atingir a segurança jurídica que as empresas exigem contra futuras reclamações", adverte um comunicado conjunto dos advogados das vítimas. De fato, o anteprojeto é um terreno minado para os sobreviventes dos campos de concentração. Eles terão apenas seis meses após a promulgação da lei para formalizar suas reivindicações. Pouco tempo, se comparado aos 12 meses concedidos aos desertores da Wer-macht (o Exército nazista). O maior obstáculo, contudo, é a cláusula que obriga o interessado a apresentar documentos que comprovem a sua antiga condição de escravo ou de deportado. Kurt Goldenstein, 85 anos, não esconde a sua indignação: "O único documento que prova que trabalhei dois anos nos porões de Auschwitz é um número tatuado no meu braço."

O anteprojeto de lei também cristaliza as disparidades existentes. De um lado, estão os ex-escravos, em sua maio-ria judeus morando nos EUA, na Europa Ocidental e em Israel. Eles receberiam individualmente em torno de R$ 20 mil. Já os antigos deportados ficariam com R$ 6 mil. Cerca de 85% destes são cidadãos da Ucrânia, Rússia, Polônia, República Tcheca ou Belarus, até hoje praticamente esquecidos. Nem todos os grupos sentem-se atendidos. Somente depois de intermináveis discussões, os ciganos conseguiram um assento no conselho da futura fundação.

Fundos insuficientes

Outra cláusula determina que a pessoa inicialmente receberá 30% da indenização total. Pelo anteprojeto, o resto será pago "após a conclusão dos cálculos de todos os requerimentos aceitos, desde que ainda existam recursos dentro dos limites existentes". Logo, se aparecer mais de um milhão de reivindicações, os R$ 10 bilhões do fundo não serão suficientes. Portanto, os 70% poderão virar 60% ou apenas 20%. Em troca da incerteza do valor global da reparação a receber, eles devem abrir mão antecipadamente de qualquer futura ação judicial. Os advogados que representam ex-escravos e antigos deportados rejeitam esta exigência. A margem de negociação diminui com o tempo, pois a maioria dos clientes tem acima de 70 anos e precisa do dinheiro para viver.

Para as empresas, contra as quais correm processos na Alemanha e nos EUA, o acordo é um excelente negócio. Dos R$ 10 bilhões que serão pagos aos sobreviventes, elas bancarão formalmente a metade. Contudo, como esses recursos poderão ser abatidos do Imposto de Renda incidente sobre o lucro, elas acabarão desembolsando de fato em torno de R$ 3,5 bilhões. Cerca de 110 conglomerados – entre eles empresas que operam no Brasil, como Daimler-Chrysler, Degussa, Mannesmann e Siemens – criaram sua própria entidade, a Stiftungsinitiative, que garante R$ 2 bilhões. O problema agora é arrebanhar os R$ 3 bilhões que faltam entre os empresários de médio porte, que dependem menos dos negócios no Exterior. Os membros da Stiftungsinitiative tropeçam num muro de silêncio e de recusas. Procurado por ISTOÉ, o porta-voz da entidade, Wolfgang Gibowski, não quis antecipar qual é a estratégia para convencer os empresários a contribuir com R$ 3 bilhões até julho próximo, quando os pagamentos começarão a ser efetuados. "Cada firma poderia contribuir com 0,1% ou 0,2% do seu faturamento", limitou-se a dizer Gibowksi.

O comportamento das empresas de porte médio não deveria causar espanto. Afinal, os grandes grupos que hoje participam da Stiftungsinitiative fizeram exatamente o mesmo até início do ano passado. "Chega uma hora em que elas percebem que não dá mais para evitar danos aos negócios no Exterior", disse a ISTOÉ o diretor jurídico da Confederação Alemã da Indústria (BDI), a Friedrich Kretschmer. O argumento de que os membros da fundação seriam poupados de futuras reclamações jurídicas nos EUA pouco pesa para os empresários mais voltados para o mercado interno ou europeu.

A exceção da Volks

A Volkswagen constitui uma exceção no cenário empresarial. Ainda em setembro de 1998, ela criou a sua própria fundação. Na época, Gerhard Schröder, governador da Baixa Saxônia, Estado que é o maior acionista da VW, já anunciara que, se eleito chanceler, iria mudar a postura do governo alemão. "Não podíamos esperar que o governo convencesse todas as empresas envolvidas a formar um fundo comum. As vítimas precisam de ajuda imediata", disse a ISTOÉ o secretário-executivo do poderoso Conselho de Trabalhadores da empresa, Hans Jürgen Uhl. Com assento no Conselho Fiscal da Volkswagen, o Conselho de Trabalhadores pressionou durante anos acionistas e executivos. Por outro lado, graças a essa insistência, o programa de treinamento de novos empregados da empresa inclui uma visita ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia.

A revisão do passado não é uma tarefa restrita à Alemanha, afirma o secretário-geral do Conselho dos Trabalhadores da Volkswagen. "Eu desconheço soluções políticas para reparar erros do passado em outras sociedades. Por exemplo, a responsabilidade da Igreja Católica na chamada conquista da América Latina, da esquerda na criação e manutenção dos campos de concentração soviéticos e o papel dos empresários na ditadura militar brasileira dos anos 60-80", disse Uhl.

Chaga esquecida

Até hoje o trabalho escravo na época nazista é negligenciado por historiadores e pesquisadores. O livro A fábrica da Volkswagen e seus trabalhadores no III Reich é uma exceção. Seus autores, Hans Mommsen e Manfred Griege, oferecem uma reconstrução parcial do infernal cotidiano de pouco mais de sete milhões de pessoas.

A VW inaugurou o modelo de manter campos de concentração na própria fábrica. As pessoas produziam equipamento bélico. Franceses e italianos montavam carros de combate, mulheres soviéticas enchiam bombas, metalúrgicos do Leste europeu soldavam as peças do avião de caça FI-103. Eles chegaram a representar 67% do pessoal ocupado no pico de produção. Precários barracões separados para homens e mulheres, estas acompanhadas de crianças, serviam de alojamento. Qualquer falha era castigada severamente, pois pairava sempre a suspeita de sabotagem. Em alguns setores, a segurança fora delegada a ucranianos, mais temidos do que a própria Gestapo. A ração diária incluía apenas sopa aguada e batatas no almoço, 150 gramas de pão, manteiga e uma fatia de linguiça.

A degradação e humilhação continuam até hoje. Na Rússia e em Israel, os sobreviventes são considerados traidores, por terem preferido colaborar com seus algozes a morrer. Na Alemanha, mesmo quem tem nacionalidade alemã e exige reparação do governo é obrigado a percorrer uma nova via-crúcis. Elas deparam-se com a frieza e a desconfiança dos funcionários estatais. É uma segunda perseguição.