Não era um lugar qualquer. Edgardo Paz escolheu o Monumento da Bandeira na cidade argentina de Rosário, a 350 quilômetros ao norte de Buenos Aires. Aos 38 anos, pai de seis filhos, pintor de ofício, mas desempregado, Paz cortou as barras metálicas de segurança, colocando-se diante do mirador do monumento a uma altura de 60 metros. Aguardou a saída de um grupo de alunos primários que visitava o local para dar um salto ao vazio e transformar-se em mais uma vítima da guerra das Malvinas. Depois de mais de 17 anos, o conflito que opôs a Argentina e a Grã-Bretanha em torno da posse do arquipélago no extremo sul do Oceano Atlântico não parou de fazer vítimas. A morte de Paz, ocorrida no final do ano, se soma a outros 300 suicídios de ex-combatentes argentinos que preferiram terminar suas vidas tragicamente. Três casos foram registrados apenas nos dois últimos meses de 1999. Para se ter idéia da magnitude, o número de mortos durante os 74 dias da guerra, em 1982, foi de 900 soldados – dos quais 649 do lado argentino.

A taxa de suicídio de veteranos da guerra das Malvinas está entre as mais altas da Argentina. O governo não tem uma explicação para a causa das mortes. Dez mil argentinos participaram da guerra, embora apenas quatro mil tenham combatido os britânicos. São os que mais sofrem. ISTOÉ conversou com ex-combatentes e familiares de vítimas do conflito. De maneira geral, há uma certa indignação em relação à forma com que os soldados foram recebidos depois da guerra. “Fomos como heróis e voltamos como párias”, acusa Cesar González Trejo, vice-presidente da Federação de Veteranos da Guerra das Malvinas, uma das dezenas de entidades não-governamentais cria-das pelos próprios soldados depois do conflito. Depois de uma saída gloriosa, com maciço apoio popular, os soldados argentinos voltaram ao fim da guerra como prisioneiros, um regresso feito à noite para esconder a humilhante derrota contra o Exército de Sua Majestade britânica. De acordo com os veteranos, foi a demonstração clara de que se haviam tornado vítimas do regime militar pelo qual tinham lutado no front externo.

De semideuses a párias – “Muitos argentinos acreditavam ser semideuses depois do que viveram na ilha”, escreveu Francisco Javier Montenegro, ex-soldado, que ficou um ano internado depois do conflito. “Porém, quando se encontraram com a indiferença da sociedade argentina, não puderam suportar.” Um estudo, feito por entidades de veteranos, constatou que metade dos ex-soldados pensa em suicídio com uma certa frequência. A maior parte dos distúrbios, levando em conta os antecedentes familiares, apareceu nos anos subsequentes à guerra, quando os soldados enfrentaram dificuldades de reinserir-se na sociedade argentina, buscando um emprego. Muitos foram discriminados e tentaram ocultar seu passado. Como se tratava de rapazes – a maioria na faixa dos 20 anos – que tiveram sua juventude interrompida pela guerra, a maioria nem completou a escola e quase nenhum chegou à universidade. Há advogados, jornalistas e até um tenor de ópera, mas a imensa maioria não encontrou emprego. Vivem de pequenos bicos ou da pensão de US$ 300 paga pelo Estado. Calcula-se que a taxa de desemprego entre os veteranos seja o triplo da média do país, que hoje oscila em 14%, uma das mais altas da América Latina. A situação tende a agravar-se. Atualmente, os soldados que lutaram na guerra estão entrando na faixa dos 40 anos, o que dificulta a possibilidade de obtenção de um emprego comparado com um jovem de 20 anos, solteiro e sem filhos, disposto a trabalhar dez horas para mostrar serviço.

“Não dá para viver com dinheiro da aposentadoria quando se tem 36, 37 anos. É preciso sentir-se parte do sistema para continuar lutando”, afirma Trejo. Ao contrário de outros paí-ses, não há registro de nenhum caso de veteranos de guerra das Malvinas terem transformado sua angústia em reações violentas contra a sociedade, como nos Estados Unidos. Nas ruas de Buenos Aires, é raro encontrar algum veterano, embora exista, pedindo dinheiro. Eles sofrem profunda depressão. Estima-se que 25% sofram de distúrbios psíquicos causados por traumas pós-guerra. “À noite, acordo banhado de suor, sinto o pânico dos tempos de guerra e tenho a sensação de estar prisioneiro dos ingleses”, conta um veterano.

A decisão de recuperar as ilhas Malvinas – ou Falklands, segundo os britânicos – tinha um sentido histórico aos argentinos que haviam aprendido desde os bancos escolares que o arquipélago lhes pertencia desde o século XIX. O atual presidente argentino, Fernando de la Rúa, está empenhado na recuperação da ilha pela via diplomática com os britânicos. Já esteve com o premiê inglês Tony Blair falando sobre o assunto.

Vote na ISTOÉ para TOP 3

Mas o gesto injustificável da reconquista das ilhas foi a ação militar armada pelo então ditador, o general Leopoldo Galtieri, que tentava perpetuar o regime depois da guerra suja – uma perseguição que levou à morte 30 mil pessoas classificadas como subversivas, segundo estimativas extra-oficiais. Até hoje, as mães da praça de Maio reúnem-se todas as quintas-feiras para prestar homenagens aos filhos mortos pela ditadura. No caso das Malvinas, os suicídios dos soldados viraram a expressão do mal que uma guerra pode fazer a uma nação.