Uma queda-de-braço com os céus. A briga foi parar na Justiça e já dura sete longos anos. De um lado, os quatro sobrinhos de um promotor suicida, Orlando Catunda Fontenele, considerado em vida o homem mais rico do município de Ipueiras, no sertão do Ceará. Na outra ponta, nada menos que a inusitada herdeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Na disputa, um patrimônio doado em testamento que, entre outras coisas, envolve uma casa – 15 cômodos e mobília luxuosa na principal rua da cidade, sete contas bancárias, além de objetos em cristal, ouro, prata e obras de arte. A disputa judicial dividiu os 35 mil habitantes da cidade – a santa é a padroeira do lugar. No final de outubro, sem explicações, a Igreja abriu mão dos bens e encerrou a questão, mas a novela não terminou por aí.

Parte do patrimônio doado pelo promotor a Nossa Senhora da Conceição simplesmente sumiu, mesmo estando sob interdição judicial. Agora, a sobrinha Teresa Cristina Fontenele Berto, 40 anos, e seus três irmãos, Marco Antônio, Conceição Maria e Fernando, querem saber onde foi parar, por exemplo, o dinheiro das contas bancárias nas quais o tio depositava não apenas o salário do mês que recebia como promotor aposentado, bem como o dinheiro que ele apurava com a venda de quase todos os objetos valiosos que havia dentro de casa. O advogado da família, Delano Cruz, 39 anos, já sabe o que vai fazer: através da Justiça, pedirá ao Banco Central que faça um rastreamento das contas nos últimos sete anos. Em uma poupança há um saldo de R$ 12 mil. Nas outras, no entanto, nenhum centavo. O advogado da Igreja, Manuel Melo Sampaio, 46 anos, diz que esse é um problema entre os bancos e os herdeiros. “Não temos mais nada com isso.”

A história do testamento começou quando Orlando Catunda Fontenele, um solteirão convicto, foi morar em Ipueiras para cuidar dos pais já idosos e, de quebra, tomar posse das propriedades da família. Sem levar em conta a existência de um irmão mais novo e dos quatro sobrinhos, decidiu fazer um testamento. O primeiro beneficiado foi o barbeiro da cidade, Venâncio Pereira Lima, mas uma discussão banal entre os dois acabou com tanta generosidade. No lugar do barbeiro, entrou o caseiro Sebastião Pereira Gomes, de apelido Sebastião Caboré – que também foi deserdado após desentendimentos com o promotor. Por último, um beneficiário sem perigo de desilusões e contrariedades: a santa de devoção, Nossa Senhora da Conceição. “Tudo foi muito rápido”, conta Teresa Cristina. “Meu tio nem sequer tinha sido sepultado e já, no cartório da cidade, o testamento foi aberto.” Diante da perplexidade dos herdeiros legais, a casa e os bens foram, então, interditados. Não sobrou nada para eles. A partir daí, faziam parte do patrimônio de Nossa Senhora da Conceição.

Inconformada, a família questionou o documento. “Meu tio aposentou-se porque tinha problemas psiquiátricos. Os documentos provam isso. Como a Justiça pode aceitar então um testamento de um homem incapaz? E os outros herdeiros, não contam?”, pergunta Teresa Cristina, que é funcionária pública. Em sete anos, no entanto, em vez de uma herança, os sobrinhos ganharam um problema. Contas bancárias vazias, objetos de valor desaparecidos, a casa semidestruída pelo tempo e, pior, a dívida com honorários advocatícios. Diante da desistência da Igreja, a conta de R$ 5 mil do advogado da instituição, Manuel Sampaio, foi paga pelos sobrinhos do promotor. “Ainda temos de pensar, com urgência, no que fazer com a casa – hoje uma construção mal-assombrada.” A saída para não gastar mais pode ser doar a casa para uma instituição filantrópica à procura de uma sede. Afinal, para o patrimônio da padroeira de Ipueiras, a perda não foi tão grande assim. Nada menos que a metade da cidade pertence, de papel passado e tudo, à Nossa Senhora da Conceição.


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