O nascimento no final do ano passado da macaquinha Tetra, o primeiro clone de primata, aproximou ainda mais da realidade a chance de termos em breve um ser humano clonado, imagem já bastante explorada pela ficção científica. Mais importante, porém, é o sucesso da técnica empregada, muito diferente da que criou a ovelha Dolly, há quase três anos. Segundo os especialistas, ela vai permitir o desenvolvimento de um novo ramo da terapia genética, o da medicina regenerativa humana. Por meio dele, acreditam, será possível fazer transplantes de órgãos produzidos em laboratório a partir de células embrionárias do próprio paciente.

Assim como Dolly, a existência de Tetra foi anunciada modestamente através de um artigo científico de três páginas, na edição de 14 de janeiro da revista Science. Assinado pela equipe de oito cientistas americanos que participaram da experiência, todos da Universidade do Oregon, conta que a macaquinha foi a única sobrevivente de uma gravidez de quadrigêmeos. Daí seu nome. Tetra foi criada a partir de células tiradas de um embrião da espécie de macaco rhesus. A coleta dessas células se dá em um estágio bastante inicial do embrião, a ponto de se poder contar nos dedos o número delas. Assim, um embrião de macaco de apenas oito células foi dividido para produzir por fertilização artificial quatro em-briões idênticos de duas células, ou blastômeros como chamam os cientistas. Em seguida, esses dois pares de quatro embriões foram introduzidos em dois invólucros semelhantes a microbexigas chamados de zona pellucida, que, por sua vez, foram transferidos para a barriga de duas macacas adultas. Ambas, então, passaram à condição de grávidas de quádruplos. Uma teve a gravidez abortada pela ausência de um tecido na placenta. No caso da outra, dos quatro fetos, apenas um foi até o fim da gravidez, nascendo após 157 dias no útero da mãe de aluguel. Tetra é um clone idêntico ao embrião que foi inicialmente dividido.

Fissão – Tal técnica é muito diferente da que produziu Dolly. A ovelha escocesa foi gerada a partir de uma transferência nuclear. Isto é, o núcleo da célula de uma ovelha adulta, onde está todo o código genético da doadora, é trocado pelo núcleo de outra. Essa célula é então colocada em um hospedeiro, que acaba gerando um clone do animal que doou o núcleo com as informações genéticas. No caso de Tetra, a técnica empregada é conhecida pelos cientistas como fissão de embriões (ou produção artificial de gêmeos). Mas o que mais difere as duas técnicas é que a da macaca tem a vantagem de possibilitar a produção das chamadas células-tronco embrionárias, sem as quais é impossível aquela medicina regenerativa humana. Além, é claro, de ter sido feita com um animal com um parentesco muito próximo do ser humano. Em tese, nada impede agora que uma pessoa seja clonada com a mesma técnica em um futuro próximo – isso se já não estiver sendo feito em sigilo, como frequentemente se especula.

E é justamente o sucesso do nascimento de Tetra e a possibilidade de essa técnica ser usada em seres humanos que deverá transformar a macaquinha em fonte de polêmica nos próximos meses. Acontece que em vários países, Brasil inclusive, já há uma proibição legal à clonagem de humanos. Uma verdadeira coleção de argumentos éticos levou esses países (principalmente EUA e Comunidade Européia) a temer o espectro bastante sinistro que a mídia e a ficção deram ao assunto. Como lembra uma das maiores autoridades em genética humana do País, o médico mineiro Sérgio Pena, “o único aspecto negativo da clonagem sobre o qual parece haver amplo acordo é que não seria seguro tentar clonar um ser humano agora”. Por outro lado, acrescenta ele, “com relação à clonagem para obtenção de células-tronco embrionárias, não vejo nenhum problema do ponto de vista prático ou ético”. Pena se diz definitivamente a favor da liberação de pesquisas com humanos nessa área, justamente pelos benefícios médicos que ela pode trazer no campo dos transplantes.

Para ilustrar seu ponto de vista, Pena imagina um cenário hipotético, que poderia se tornar realidade em pouco tempo. Um sujeito chamado João tem um enorme infarto do miocárdio, de tal maneira que apenas 30% do seu músculo cardíaco sobrevive. As chances são de que ele desenvolverá insuficiência cardíaca e, se sobreviver, terá sérias consequências. No hospital, é retirado um pequeno pedaço de sua pele e as células são crescidas em cultura. Os núcleos de algumas células são injetados em ovócitos humanos doados (fase primitiva do óvulo), dos quais o núcleo foi removido. Estes óvulos geneticamente modificados crescem por uma semana em laboratório, transformando-se em embriões com mais ou menos 100 células. Dessas, são retiradas as chamadas células-tronco (as que dariam origem a órgãos específicos). Colocadas numa cultura especial que contém indutores de crescimento, obteriam-se células musculares cardíacas, que seriam implantadas no coração do paciente, regenerando seu músculo cardíaco. “As culturas de células-tronco de João seriam congeladas, para o caso de ele vir a precisar delas mais tarde para a produção de vários outros tipos de células diferenciadas, como neurônios para o tratamento da doença de Parkinson, ilhotas pancreá-ticas para a diabetes ou mesmo linfócitos para o tratamento de Aids”, diz Pena em um artigo científico que deverá ser publicado em breve.

Não governos – Mas e sobre a possibilidade cada vez mais próxima de um clone humano vivo? O cientista brasileiro acredita que os usos mais prováveis da clonagem humana estariam muito afastados daqueles cenários bizarros e espantosos explorados pela mídia e pela ficção. Para reforçar seu ponto de vista ele lembra seu colega americano Lee Silver, que afirmou que “são indivíduos e casais que querem se reproduzir com sua própria imagem. São indivíduos que querem que seus filhos sejam felizes e tenham sucesso. E são indivíduos e casais, e não governos, que controlarão as novas tecnologias de reprodução”.