Há de se convir, é uma mudança e tanto. Para quem já andou por aí de cabeça raspada, trajando apenas uma túnica laranja, vendendo incensos e livros da filosofia Hare Krishna, ter na cintura uma pistola Taurus calibre 40 provoca um certo impacto. Tanto para quem o vê armado como para ele, que a carrega. Nascido numa família de classe média do bairro da Tijuca, zona norte do Rio, há 35 anos, Orlando Zaccone ainda não sabe bem explicar essa transformação. Nem está muito preocupado com isso. Desde que se entende por gente, Orlando tem sido essa metamorfose ambulante. Foi surfista, jornalista (formou-se na PUC e trabalhou como repórter de O Globo), vendedor de produtos naturais, produtor de vídeo e administrador de imóveis. Por que não delegado de polícia? Orlando conheceu o Hare Krishna aos 18 anos. Passou seis anos frequentando reuniões e festas do grupo, até que, em 89, resolveu provar o sabor da vida monástica. Vinte jovens dividiam uma pequena casa no bucólico bairro de Santa Teresa, no centro do Rio. As moças dormiam no quarto, os rapazes na sala. Como sempre faltava água, tinham de caminhar alguns quilômetros para tomar banho. O ambiente era de muita paz e amor. Acordavam às 4h da manhã para meditar. Depois, desciam as ladeiras do bairro com seus saris e dhotis, as vestimentas características, para pregar e vender livros da filosofia.

A experiência durou um ano. Neste período, Orlando observou cegamente as regras básicas, entre elas o celibato, a abstinência de drogas, de carnes, peixes e ovos, e de jogos de azar. “Descobri que não era a minha. Para ser um brahmana (sacerdote), você precisa renunciar a tudo.” Orlando deixou a comunidade, mas continua adepto da filosofia até hoje. Com uma filha para -criar, abriu uma lanchonete natureba. Não deu certo. Tentou administrar imóveis, mas decidiu-se pela faculdade de Direito.

O capítulo mais recente de sua biografia começou a ser escrito no ano passado. Formado em Direito, tentou alguns concursos públicos, até ser aprovado na Academia de Polícia. Um par de meses depois, foi nomeado pelo secretário Josias Quintal. Tal como os soldados americanos no Vietnã, foi praticamente jogado às feras. Tem dado conta do recado. Desde dezembro, atua como delegado de plantão da 32ª DP, em Jacarepaguá. Já deu para sentir um pouco do que o aguarda. Outro dia, pediu a prisão preventiva de um homem que estuprou a filha de nove anos. Durante três anos, Orlando ficará em regime probatório, sob rigorosa vigilância de seus superiores.

Na mesma turma de Orlando formou-se um ex-seminarista. A chegada desses jovens profissionais com cultura geral e vivências amplas a esse território inóspito tem a sua razão de ser. Na verdade, reflete uma tentativa de mudança de mentalidade dentro da polícia civil do Estado, para que sua atuação fique cada vez mais restrita aos limites da lei. Paralelamente, o governo Anthony Garotinho está começando a promover uma reforma geral nas delegacias do Estado.

Camaleão – Apesar das primeiras denúncias de superfaturamento, o projeto Delegacia Legal é a menina dos olhos de Garotinho. Sua idéia é transformar, até o fim do mandato, todas as 120 DPs em delegacias legais. Em poucas linhas, isso significa acabar com as carceragens e informatizar o sistema de dados, colocando todas as delegacias em rede. “Não adianta só reformar as instalações. Junto à delegacia legal tem de vir o delegado legal”, sorri Orlando, apontando para si. Para ele, é esse espírito da legalidade que tem de passar a imperar. Sessões de torturas em delegacias e atuações truculentas nas ruas são, segundo o jovem delegado, “resquícios da ditadura que precisam acabar”.

Com relação a drogas, Orlando pessoalmente acha que esta é uma questão de saúde pública. Enquanto delegado, no entanto, diz que não pode deixar de aplicar o que está previsto na lei, que comparada ao passado, traz hoje grandes benefícios. Recitando mantras nos momentos difíceis, ponderando muito a cada situação, para não extrapolar ou usar o poder que tem às mãos de forma indiscriminada,
Orlando torce para não precisar nunca matar alguém. Mas, se tiver de acontecer, acha que está preparado. Apesar de os amigos e familiares estarem acostumados com as constantes mutações de Orlando-camaleão, essa sua nova faceta surpreendeu. A filha implorou, disse que preferia vê-lo trabalhando como guardador de carros, mas não adiantou. Um amigo lhe disse que estava torcendo para que ele fosse reprovado no concurso. Orlando entende. Para quem, como ele, cresceu ouvindo os Titãs cantarem “polícia para quem precisa de polícia”, esse tipo de reação é natural. Orlando acredita que a imagem ruim da polícia está começando a mudar e ele espera contribuir para isso. Sob a proteção de Krishna.