Em sua aldeia, num recanto da Guiana conhecido como Palm Grove, a índia wapixana Evelyn Gomes guarda para emergências médicas uma noz chamada tipir. Segundo a tradição de seu povo, a raspa do tipir estanca hemorragias e impede infecções, além de servir como anticoncepcional. “O tipir também é abortivo. Aprendi o uso com minha mãe, que aprendeu com a mãe dela”, conta Evelyn. Do outro lado da fronteira com o Brasil, o wapixana Lean-dro de Castro Pereira apega-se à sabedoria de seus antepassados para pescar sem lança nem rede. Morador da Maloca Malacacheta, nas imediações de Boa Vista (RR), Leandro macera as folhas de uma planta chamada cunani, faz uma espécie de bolinho e, depois, o espalha sobre a água. “Os peixes ficam doidos. Começam a saltar e, daí a pouco, morrem”, diz. “É só pegar e comer, como já faziam os antigos. O cunani não suja a água nem ofende a carne do peixe.”

Na esteira de um litígio entre o Brasil e a Grã-Bretanha, da qual a Guiana foi colônia, os wapixanas foram separados por uma linha arbitrária de fronteira em 1904. Por causa do tipir e do cunani, agora eles estão mais unidos do que nunca. Preparam-se inclusive para uma batalha em tribunais internacionais. Os wapixanas contestam o químico britânico Conrad Gorinsky, que registrou propriedades dessas plantas, como descobertas suas, nos escritórios de patente da Europa e dos Estados Unidos. O problema é que, antes de isolar os componentes das plantas, Gorinsky passou longas temporadas entre os wapixanas, pesquisando justamente plantas medicinais. “Durante muitos dias e noites fui seu guia na mata”, lembra o wapixana Ashpur Spencer, 83 anos.

Agente de saúde em Sand Creek, aldeia que reúne 800 wapixanas, Louise Randhamil lembra-se bem de Gorinsky. “Ele falava em dividir os produtos de suas pesquisas. É um absurdo o que fez, pois a Picky sabe como precisamos de uma geladeira a energia solar para guardar vacinas”, reclama, referindo-se à irmã do cientista, que também costumava visitar a região. O cacique de Sand Creek, Eugene Andrew, pondera que não se trata de pedir uma doação específica ao cientista. Ele quer justiça. Acredita que o fundamental é demonstrar que Gorinsky não teria isolado os componentes das plantas nem registrado suas propriedades sem a ajuda de seu povo. “Ele pegou os conhecimentos dos antepassados e quer vender para as indús-trias como se fosse o descobridor.”

Andrew foi o anfitrião de uma comitiva de quatro caciques wapixanas do Brasil que, em recente reunião, convocou seus irmãos de sangue a contestar na Justiça as patentes obtidas por Gorinsky. “Nós somos um povo só e precisamos recuperar a memória e o conhecimento dos antigos”, conclamou Noberto Cruz da Silva, o chefe da comitiva. “As dificuldades para nos encontrarmos não são nada perto do que temos pela frente”, comparou, referindo-se ao difícil acesso à aldeia, que inclui a travessia do caudaloso rio Rupununi, numa região onde não há pontes. A comunicação entre eles é feita em idioma próprio, sendo que os moradores do Brasil também falam português e os da Guiana, inglês. Mesmo os wapixanas que dominam o inglês ficaram estupefatos diante de cópias das patentes. A linguagem era, evidentemente, inacessível a leigos.

A primeira patente obtida pelo cientista foi relativa à árvore Coração Verde (Octotea rodiaei), que produz o tipir. Por sua descrição, o princípio ativo da planta é um eficaz antifebril, capaz de impedir recidivas de doenças como a malária, útil no tratamento de tumores e até no combate ao vírus da Aids. A substância foi batizada por Gorinsky de rupununines, uma referência ao principal rio da região. O segundo princípio ativo registrado pelo químico, o polyacetylenes, foi obtido do arbusto Cunani (Clibatium sylvestre). É apontado como um poderoso estimulante do sistema nervoso central, um neuromuscular capaz de reverter quadros de bloqueio do coração.

“É preciso que cada wapixana saiba o que está acon-tecendo”, diz Tony James, coordenador da Amerindian People’s Association (APA), em Georgetown, capital da Guiana. Os wapixanas somam cerca de 16 mil pessoas, dez mil delas em território guianense. “Muitos passaram a incentivar a abertura de uma ação depois do caso da ayahuasca”, completou, referindo-se à beberagem popular entre os povos da Amazônia. A pedido de indígenas do Equador e da Colômbia, a Agência de Patentes dos Estados Unidos revogou em novembro do ano passado a patente da ayahuasca, que havia concedido a um empresário americano.

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Como os caciques do Brasil que estiveram na Guiana, Tony James foi um dos signatários de um ofício despachado pelos wapixanas para a senadora Marina Silva (PT-AC), no qual pediam ajuda para contestar as patentes do rupununines e do polyacetylenes. Pela Convenção de Diversidade Biológica, assinada em 1992 por 144 países no Rio de Janeiro, no caso de produtos obtidos a partir de conhecimentos tradicionais, deve-se reconhecer a origem e destinar parte dos royalties à comunidade que detém a informação. Desde então, Filipinas, Costa Rica e os países do Pacto Andino – Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela – adotaram leis que controlam o acesso aos recursos genéticos. No Brasil, a senadora Marina é autora de um projeto de lei regulamentando a questão. “Somos força-auxiliar, mas vamos colaborar no máximo possível, acionando as instituições”, assegura Marina.

Pelo menos uma instituição já atendeu ao apelo: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), representada em Sand Creek pela advogada Gisela de Alencar, especialista em direito ambiental. “Este é um caso modelo, porque Gorinsky citou no texto de ambas as patentes que os wapixanas usavam essas plantas”, afirma Gisela. Informado por ISTOÉ sobre o processo prestes a ser instaurado, Gorinsky, 63 anos, defendeu que o rupununines e o polyacetylenes são descobertas suas. “Eu dediquei minha vida a este trabalho. Registrei componentes específicos que não haviam sido decodificados. Fiz todo o esforço intelectual e gastei do meu bolso alguns milhares de dólares. Será que os índios vão investir nisso?”, reagiu o cientista, ressaltando que as substâncias não estão sendo comercializadas. “Mas ninguém pode tirar a patente do inventor. Não dá para discutir como se repartir o bolo se não há nenhum bolo”, completa Gorinsky, filho de um polonês que se radicou na Guiana ao conhecer sua mãe, descendente de uma índia atoraí.

Todos os países nos quais Gorinsky registrou as patentes são signatários da Convenção da Biodiversidade, mas os Estados Unidos ainda não ratificaram o acordo. Por isso, o processo deve começar pela Europa, através de Portugal, devido aos tratados de cooperação com o Brasil, para, posteriormente, ser julgado pela Corte de Luxemburgo, o fórum europeu para questões do gênero. Em fevereiro, os wapixanas discutirão, em Boa Vista, as estraté-gias da ação, na Assembléia Geral do Conselho Indígena de Roraima. “Vamos alertar os outros povos sobre a necessidade de preservar seus conhecimentos”, diz o cacique Noberto. Enquanto fevereiro não chega, o cacique Andrew revogou antigas regras de hospitalidade. A entrada de pesquisadores está proibida em Sand Creek.


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