À primeira vista, parece ridículo e beira o inacreditável. A doença que está assustando o mundo na virada do terceiro milênio passa longe do drama do câncer ou da urgência dos ataques cardíacos. O mal que amedronta a Europa e os Estados Unidos e coloca em alerta o Brasil e outros países é a gripe, infecção contra a qual o homem não descobriu a cura mas que, em geral, não causa mais do que um incômodo mal-estar e afeta um número previsível de pes-soas. Desta vez, no entanto, é diferente. Há duas semanas, a doença se espalha com assustadora ferocidade pelo Hemisfério Norte e teme-se que a situação se agrave.

Na França, a epidemia já atingiu pelo menos dois milhões de pessoas. Na Holanda, há re-giões onde metade dos habitantes está gripada. Na Espanha houve um aumento de 30% nos casos de gripe em relação ao ano passado. Autoridades italianas calculam que dois milhões de pessoas já contraíram a doença e receia-se que ocorram 20 mil mortes. Na Inglaterra, o quadro também é desolador. Estima-se que 77% dos lares britânicos foram atingidos. Até o papa parece ter sido atingido. Em Israel, na primeira semana do mês, 155 pessoas morreram vítimas de complicações da doença.

Desenha-se o caos no Hemisfério Norte. Por conta de tanta gente nocauteada pela gripe, hospitais estão abarrotados e cirurgias são canceladas – seja porque o paciente não tem condições de ser operado ou os leitos estão reservados para atender às vítimas da epidemia. Isso porque a gripe está se mostrando mais poderosa do que as antecessoras. As pessoas amargam pelo menos dois dias de cama e, para aqueles que precisam ser hospitalizados, a recuperação é bem mais lenta. Os sintomas são febre alta, tosse seca, dores musculares e dor de cabeça. Os mais vulneráveis são as crianças, as pessoas idosas e aquelas com o sistema de defesa debilitado ou com problemas cardíacos e respiratórios.

Até pela gripe ser uma doença que acontece todos os anos sem causar grande preocupação, esse panorama surpreende. Mas é preciso conhecer um pouco mais do mecanismo de evolução do Influenza, vírus causador da gripe, para entender por que isso está acontecendo. O responsável por esse estrago gigantesco é o vírus Influenza, do tipo A, do subtipo H3N2. Mais especificamente, trata-se do Influenza A/Sydney/5/97, que leva esse nome por ter sido identificado em 1997, em Sydney, na Austrália. Daí a gripe ter recebido o apelido de australiana. Mas o vírus não é totalmente novo. É fácil entender por quê. O Influenza sofre mutações rapidamente. Ele pode ser do tipo A ou B (responsáveis pela infecção em humanos), e, devido a sua constante mutação, apresenta vários subtipos (H1N1, H2N2, H2N3 e outros), de acordo com as proteínas presentes na sua superfície (neuraminidase e hemaglutinina). Em meses, pequenas mudanças ocorrem nessas proteínas, imprimindo ao vírus características diferentes (agressividade maior ou menor, por exemplo). O vírus que está atacando agora com tanta ferocidade já circula no Norte e no Sul do planeta – inclusive no Brasil – desde 1997 sem ter causado maiores problemas. Mas em algum momento de sua trajetória, ele sofreu uma mudança maior e em menos tempo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a epidemia se espalha em tempo recorde. “Enquanto combatíamos o bug dos computadores, o vírus da gripe nos pegou pelas costas”, disse o prefeito Rudy Giuliani numa entrevista que capitaneou com febre de 39 graus e forte dor de garganta. O Centro de Controle de Doenças, órgão do governo americano, diz que neste ano o surto começou muito cedo, trazendo aumento de mortes relacionadas à gripe. “A gripe provocará nesta temporada nos Estados Unidos cerca de 20 mil óbitos e 110 mil internações”, diz Lynnette Brammer, coordenadora da vigilância contra gripe no QG do Centro, em Atlanta.

Dores – A paulistana Maria Aparecida Soares é uma das vítimas da epidemia. Desde sexta-feira 7, ela tem faltado ao seu posto na Missão Diplomática do Brasil na Organização das Nações Unidas. “Começou na sexta-feira, com dor de cabeça e tonturas. À tarde, a garganta doía e a febre estava brava. Não sei quando vai acabar”, relata. “Tenho saúde de ferro. Não sei como peguei esta gripe”, diz. Mas mesmo uma pessoa saudável corre riscos, principalmente se o seu cotidiano envolve o contato com muitas pessoas. Este é o caso da brasileira, que atende centenas de pessoas na Missão do Brasil.

Os hospitais de Nova York estão superlotados. E o problema não é apenas regional. O Cedar-Sinai Medical Center, de Los Angeles, recebeu o dobro de pacientes gripados em relação à temporada passada. Em outras partes, foram canceladas cirurgias. “Adiamos operações que não são urgentes”, diz Charles Vacanti, o anestesista da University of Massachusetts Memorial Medical Center, em Worcester. Já John Oueerkirk, do St. Vincent Hospital, em Nova York, vê o pronto-socorro da casa com lotação beirando a ilegalidade.

Na Inglaterra, o governo está preocupado. “Os números oficiais talvez não reflitam a real extensão do problema”, admitiu o ministro da Saúde, Alan Milburn. Até o professor Liam Donaldson, uma das maiores autoridades em saúde pública do país, disse que o país vive a pior epidemia dos últimos dez anos.

Além da mutação do vírus, há outras razões que explicam o apetite da epidemia. Uma delas foi o baixo índice de vacinação na Europa. “Lá, foram vacinados cerca de 40% dos idosos”, conta Jarbas Barbosa, do Ministério da Saúde do Brasil. Essa pequena adesão teve papel decisivo para facilitar o aumento de casos. Isso porque as vacinas são feitas com amostras dos vírus predominantes nas temporadas anteriores de gripe em cada hemisfério. A vacina dada no Brasil em abril no ano passado, por exemplo, foi feita com cepas do vírus que circulou a partir de outubro de 1998 no Hemisfério Norte, quando lá era inverno, estação propícia para a propagação da gripe (as amostras são coletadas por um esquema mundial de vigilância em que laboratórios acompanham os tipos de Influenza mais comuns em circulação). E como o vírus predominante na atual epidemia circulava há três anos, as últimas vacinas já carregavam partículas suas, que estimulam a criação de anticorpos específicos contra ele. Mas como pouca gente se vacinou, poucos ficaram imunes.

No Brasil, não se sabe o que acontecerá. Espera-se que a epidemia desembarque por aqui no Carnaval, trazida por turistas. “É uma época em que as pes-soas ficam em lugares fechados e super-povoados, o que facilita a transmissão”, alerta o infectologista André Lomar. Mas o grau de violência da epidemia é incerto. O que pode impedir que a gripe estrague o Carnaval é o verão. “O vírus se propaga melhor em ambientes frios e úmidos. A temperatura quente pode contê-lo”, explica o infectologista Eduardo Forléo, do Grupo Regional de Observação da Gripe, ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS). Outro fator que leva a uma expectativa não tão catastrófica é o fato de a vacinação de 1999 ter atingido 87,3% dos idosos.

De qualquer forma, o Ministério da Saúde anunciou medidas. Desde sexta-feira 14, pessoas com mais de 65 anos que viajarem para o Hemisfério Norte e não tiverem sido vacinadas em 1999 receberão a vacina – a mesma dada no ano passado – em postos nos aeroportos. Também tomarão a vacina portadores de doenças crônicas do coração, pulmão, anemias e outras pessoas com sistema imunológico fragilizado. Na campanha de vacinação que será feita a partir de abril, também serão vacinados idosos acima de 60 anos (até o ano passado a idade mínima era 65 anos), além das pessoas com sistema de defesa debilitado. O resto da população pagará pela vacina. Na rede privada, ela deve estar disponível no final de fevereiro. É importante lembrar que a nova vacina já está preparada para imunizar contra o Sydney. Sua eficácia gira em torno de 70%. Ela depende da capacidade da pessoa de gerar anticorpos e também da mutação do vírus. Nada garante, por exemplo, que, quando a nova vacina chegar ao Brasil, o vírus por aqui também não tenha sofrido mudanças. Mesmo assim, a vacina é a melhor forma de prevenção.

Mas não é só a ciência tradicional que fornece munição contra o vírus. Em São Paulo, há seis meses circula outro tipo de “vacina” contra a gripe. É uma receita que teria sido enviada pelo espírito de Bezerra de Menezes, médico cearense que viveu no século passado. Ele teria previsto a epidemia e recomendado uma receita para afastar o perigo. A aposentada Zulmira Garcia, 72 anos, toma a vacina antigripe e, para reforçar a proteção, seguiu a recomendação do espírito. “Acredito que estou imune”, diz. O comerciante Eduardo Petry, 44 anos, também atendeu o espírito. “Não sou espírita, mas me sinto protegido”, diz.

Remédios – Na indústria farmacêutica, há duas novidades: os remédios Relenza e Tamiflu. “Eles são efetivos quando tomados em até 48 horas do aparecimento dos sintomas”, explica John Oueerkirk. Os medicamentos são sucesso nos Estados Unidos. Calcula-se que 50 mil receitas de Relenza foram prescritas na semana antes do Natal, número quatro vezes maior do que as compras da semana anterior. Já o Tamiflu correu perto, com 45 mil prescrições. A previsão é a de que ele chegue ao Brasil em março e o Relenza em agosto. Os dois inibem a ação da proteína neuraminidase. É ela que corta a membrana que envolve o Influenza, permitindo que ele contamine outras células. Outra alternativa é o Mantidan. O remédio é usado contra o mal de Parkinson mas atua sobre o Influenza tipo A. Há também boas novas no campo das vacinas. Em setembro de 1999, um pesquisador belga publicou um trabalho com uma fórmula que talvez elimine a necessidade das agulhadas anuais.

Os esforços na busca da cura da gripe não são exagerados. Dependendo do grau de agressividade do vírus e da capacidade de defesa do organismo invadido, a guerra pode ser vencida pelo influenza. “A complicação mais grave da gripe é a pneumonia, que pode levar à morte”, explica o infectologista Artur Timerman. Outra complicação, mais rara, atinge o coração (miocardite). “O vírus pode infeccionar o músculo cardíaco e causar uma parada do coração”, explica a geriatra Maria do Carmo Sitta, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Complicações – Talvez tenha sido essa a causa de morte do britânico jogador de rugby Kieron Gregory, 33 anos. Ele morreu de ataque cardíaco na semana passada apresentando sintomas da gripe. Desde o Ano-Novo, Gregory reclamava de tosse e dor de cabeça. Para tentar se livrar da gripe, o jogador, que pesava quase 150 quilos, foi malhar. Passou mal, foi levado a um hospital e orientado a tomar medicamentos e descansar em casa. Horas mais tarde, faleceu em uma ambulância a caminho do hospital.

Além dos riscos, o que também preo-cupa quando o assunto é gripe é a expectativa de que uma devastadora epidemia vá ocorrer. É a Big one, que ninguém sabe dizer quando acontecerá ou se já é a epidemia deste ano. “Há muitos elementos escondidos nessa epidemia”, afirmou o professor Liam Donaldson. “Pode ser a pandemia que esperamos”, disse. Essa epidemia de dimensões catastróficas seria resultado de uma grande mutação no vírus, que o tornaria imbatível. Por enquanto, as previsões sobre ela são incertas. “Ninguém tem condições de prever quando um novo vírus vai chegar”, disse Alan Hay, diretor do Centro de “Influenza” da OMS sediado no Instituto Nacional de Pesquisa Médica de Londres. “Tudo o que podemos dizer é que ele um dia virá.” Quando isso acontecer, espera-se que a medicina já tenha encontrado a arma final.