Foram 35 mil missões aéreas, incluindo dez mil bombardeios, despejando 23 mil mísseis e outros explosivos. Destruíram-se, nas contas aliadas, 450 peças de artilharia iugoslava, 220 veículos blindados, 120 tanques, mais da metade da indústria militar sérvia e 35% da rede elétrica do país. Isso sem contar, é claro, outros danos pesados na infra-estrutura e a catastrófica perda de vidas humanas, pelo menos 1.500 pessoas. Na quinta-feira 10, o presidente americano Bill Clinton anunciou em rede de televisão a "conquista da vitória" na guerra contra a Iugoslávia. Notou-se um indefectível ar de auto-satisfação em seu rosto, mas havia também muita cautela. O presidente lembrou que "desafios formidáveis" vão-se apresentar no futuro. Afinal, se finalmente os bombardeios pararam depois de 78 dias, a guerra propriamente dita ainda não acabou. Quando a primeira divisão de fuzileiros navais americanos colocar seus pés na região kosovar, estará começando uma longa ocupação de território literalmente explosivo. Para começar os pracinhas terão de pisar com extremo cuidado, para evitar o remanescente das calculadas 500 mil minas plantadas pelos sérvios.

Mais para frente vai se tentar desarmar a armata brancaleônica do Exército de Libertação Kosovar (ELK), cujos batalhões ainda carregam o pecado original de sua gênese: a amoralidade típica das gangues de tráfico de drogas. E, pior que isso, estará nas mãos da força internacional liderada por tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a criação na prática de Kosovo como um Estado independente da Sérvia, e que poderá se transformar em exemplo para todos os grupos separatistas europeus. Além, é claro, de formar uma ilha muçulmana em meio ao continente. Enquanto isso, Slobodan Milosevic, lutando por sua sobrevivência, estará planejando novas armadilhas.

A bem da verdade, o líder sérvio estará coberto de razão em seu ressentimento. Em primeiro lugar porque o presidente Bill Clinton deixou claro em seu discurso que nenhum dólar americano será colocado na reconstrução da terra arrasada por suas bombas enquanto Milosevic estiver no poder. E, como motivo ainda mais importante para irritação, o acordo que o dirigente sérvio assinou na semana passada garantia a integridade do território iugoslavo, sendo Kosovo parte dele. Neste caso, ao contrário do jogo do bicho, não vale o escrito.

O problema é que Conselho de Segurança da ONU aprovou também na quinta uma resolução que, na prática, transforma o Kosovo num protetorado. A resolução aprovada – inclusive com voto de apoio da Rússia, aliada sérvia, e abstenção da China – volta a incluir no cenário as bases do falido acordo de Rambouillet. O mesmo que Milosevic se recusou a assinar e causou toda a briga. De acordo com os termos daquele documento, a possibilidade de independência kosovar será um fato plausível em três anos. É claro que esta situação continua provocando muito choro e rangeres de dentes: qual sérvio ficaria feliz com semelhante afronta? Em Belgrado e em Pristina fala-se abertamente na ressurreição das guerrilhas partisans iugoslavas. É por isso que, entre outras regalias, a ONU autorizou o uso ilimitado da força pelas tropas internacionais comandadas pela Otan. Eis, portanto, os ingredientes para uma prolongada guerra de atrito nos Bálcãs.

Na realidade, quando os calculados 40 mil soldados, policiais e paramilitares sérvios, deixarem a região, o Kosovo passará a ser substancialmente independente de Belgrado. Para começar, todo o enorme corpo administrativo da região será composto por enviados internacionais e civis kosovares. O policiamento, por exemplo, será feito pelas tropas de ocupação, e espera-se que guerrilheiros do ELK possam ser treinados para as tarefas menores. Um Parlamento de 120 representantes locais será eleito através do voto livre e secreto. O comércio exterior será feito basicamente com a Macedônia, a Albânia e Montenegro. Neste novo Kosovo as moedas em circulação devem ser o dólar americano e o marco alemão.

 

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Temores Por tudo isso, os chamados "desafios formidáveis" do discurso de Clinton não exprimem nem um pouco da dramaticidade do futuro nos Bálcãs. Os europeus – que vão pagar a conta pela destruição do território iugoslavo – nunca desejaram um Kosovo independente. Temem seu exemplo aos nacionalistas radicais como corsos – em sua campanha de separação da França – ou bascos – e sua encarniçada luta de secessão de Espanha e França –, entre outros. A própria idéia de uma independência vai totalmente de encontro com a idéia da União Européia, onde estarão aguados os conceitos de fronteiras ou nacionalidades. Imagine-se ainda que os kosovares possam resolver se anexar aos seus vizinhos do sul para recriar o velho e perigoso conceito da "Grande Albânia". Quem poderá garantir que neste território imaginário também não seriam incluídos nacos da Macedônia? E na sexta-feira 11 outro fato levou água ao moinho das incertezas: a Otan foi surpreendida pelo deslocamento de tropas russas que chegaram a Pristina, no Kosovo, provenientes da Bósnia. Deste modo, fica difícil dizer se a guerra acabou mesmo.


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