Num dia de maio de 1976, o carioca Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), regava um canteiro de rosas no quintal da sua casa em Mangueira, quando "a patroa" dona Zica chegou à janela querendo saber o porquê de as flores serem tantas e tão bonitas. "Já perguntei a elas em vão. As rosas não falam", brincou ele, que relembrou o fato num manuscrito inédito e revelado agora por ISTOÉ (leia destaque). Naquele momento Cartola sentiu que havia dito algo importante até que tempos depois compôs aquela que seria considerada uma das músicas mais belas do seu repertório e de toda a MPB. As rosas não falam é um dos clássicos incluído no álbum Só Cartola, gravação do show realizado no ano passado em homenagem aos 90 anos do compositor, trazendo as vozes de seus parceiros Elton Medeiros e Nelson Sargento acompanhados pelo grupo Galo Preto.

Ao lado de pérolas como Tive sim, Acontece, O sol nascerá, Peito vazio e Sofreguidão, as três últimas em parceria com Elton Medeiros, outras cinco canções inéditas foram pinçadas por Afonso Machado, bandolim do Galo Preto – grupo que acompanhou o próprio Cartola –, a partir de uma pesquisa de Arthur de Oliveira, co-autor da biografia Tempos idos. Numa parceria póstuma, baseada em fita gravada durante uma roda de samba, Nelson Sargento completou Velho Estácio, Ciúme doentio e Deixa, enquanto A Mangueira é muito grande aponta como parceiro um certo Ataliba, de sobrenome e paradeiro desconhecidos. Deixa – um dos únicos temas instrumentais da autoria de Cartola – veio à tona graças ao maestro Lyrio Panicali, que ouviu o compositor assobiando-a e fez com que ele repetisse a música várias vezes até escrever a partitura ao piano. Afonso Machado quer viabilizar o projeto de um livro contendo melodias, letras e cifras das 140 composições do mangueirense encontradas até hoje – nada menos do que 30 delas inéditas. O trabalho enfeixaria toda a obra de Cartola, que há muito merece ser reunida.

Um violão de muito respeito

Violonista e compositor refinado, o carioca Guinga ainda não conquistou a popularidade compatível com seu talento. Popularidade entre o grande público, porque para garimpadores da MPB e colegas artistas ele é mais que reconhecido. Basta ouvir as participações estreladas – Chico Buarque, Ed Motta e o gaitista belga Toots Thielemans, entre outros – no seu quarto álbum, Suíte Leopoldina, que reconfirma a qualidade dos três discos anteriores e pode ser incluído, desde já, entre os grandes títulos do ano. O CD percorre os caminhos da memória musical e afetiva do violonista, que cresceu nos subúrbios do Rio de Janeiro ouvindo Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Jacob do Bandolim e muitos mais. Da rica tradição de influências resultaram sambas, choros, valsas e até um baião que ele apresenta com sotaque bem pessoal. Com esta opção, Guinga acabou resgatando uma musicalidade praticamente esquecida no Brasil, o que o transforma num espécime cada vez mais raro e injustamente perdido na hoje rebolativa fauna da MPB.

Celso Fonseca