José Ferreira da Silva, 47 anos, morador de Mangabeirinha, lugarejo a 315 quilômetros de São Luís, no Maranhão, saiu de casa na manhã da sexta-feira 4 muito elegante. Vestira sua camisa florida de manga comprida e botão e, na cabeça, o chapéu xadrez que só usa em bailes e missas. Descalço, pedalou até a rua principal da vila, uma trilha com meia dúzia de casas de barro e teto de palha, e se juntou ao resto da população. Naquele dia José não foi à roça trabalhar. Como todos ali, o lavrador estava ansioso para ver sua terra ser cortada por motos, jipes e "uns carros diferentes". Na verdade, quadriciclos, uma das três categorias da competição Baja Lençóis 600, o rali que na semana passada pôs à prova a resistência de homens e máquinas num dos lugares de natureza mais fascinante e desafiadora do Brasil – os Lençóis Maranhenses.

"Estou sentindo um alegrão, nunca tinha visto essas carreiras aqui, nessa buraqueira onde a gente mora", declarou José Ferreira, após assistir a passagem da primeira motocicleta, dirigida pelo piloto Jean Azevedo. "Me admirei como ele é ligeiro. Quando passou o chão até tremeu." Francisleine Marques dos Santos, 16 anos, habitante de Anjo da Guarda, vilarejo vizinho a Mangabeirinha, interrompeu seu banho para ver o rali passar. "Não sei o que é rali não, mas estou achando um barato esse monte de carro em frente a minha casa. É uma coisa importante", diz a garota, mãe de um menino de dois meses. O Baja Lençóis é a primeira etapa de um total de cinco que serão disputadas este ano em outras regiões do País. "A idéia é aliar competição com turismo. Há no País tantos lugares deslumbrantes e inacessíveis que só é possível chegar com carros especiais", explica Arilo de Alencar Júnior, um dos organizadores do evento. Nesse encontro de tecnologia com natureza, o barulho dos carros causou estranheza entre os nativos. "Não estou acostumada. Aqui no interior tudo é paradinho. Quando tem movimento, é um só um pedacinho de fuxico", afirma Maria Dourado, 44 anos.

Encontrando povos e paisagens, o enduro foi dividido em dois dias de provas. No primeiro, 50 motos, 17 quadriciclos e 15 carros largaram de São Luís e rodaram 300 quilômetros até a cidade de Barreirinhas. No trajeto, enfrentaram estradas de terra e de areia, além de muita lama. "Esse trecho foi cansativo, pois choveu muito e as trilhas estavam alagadas", avalia Jean Azevedo, 25 anos, que já disputou três Paris–Dacar, considerado o rali mais difícil do mundo, e terminou a etapa em primeiro lugar entre as motos. Para se ter uma idéia dos desafios, apenas sete dos 15 carros que saíram de São Luís chegaram a Barreirinhas no mesmo dia. O resto atolou ou quebrou. Por incrível que pareça, botar o pé na lama ou destruir carros caríssimos é hobby de muita gente. A grande maioria dos competidores era amadora e, na falta de patrocínio, pagou para correr. "Eu gastei quase R$ 1 mil em hospedagem, alimentação e manutenção da moto. Vale a pena, pois é o jeito que eu encontro para fugir do dia-a-dia", diz o arquiteto potiguar Assis Aquino, 33 anos.

 

Porco atropelado No segundo dia de rali, a imensidão dourada das dunas do Parque Nacional dos Lençóis, cuja área de 155 mil hectares é quase do mesmo tamanho da cidade de São Paulo, foi o paradisíaco cenário da competição. Paradisíaco e infernal. As "morrarias" de areia, algumas de mais de dez metros de altura e contornadas por lagoas de água verde e doce, tiraram mais do que a concentração dos pilotos. Era tanta a dificuldade de superar as dunas e de se localizar naquela vastidão que os organizadores optaram por diminuir o circuito de 300 para 150 quilômetros. Havia o risco de os carros terem de passar a noite na areia, pois não teriam como avançar na escuridão. Mesmo assim, no final do rali, foram registrados dois acidentes de moto e um de quadriciclo. No mais grave, o motociclista Tércio Martins atropelou um porco, caiu e quebrou o fêmur. Nesse deserto brasileiro, onde chove 300 vezes mais do que no Saara, as únicas testemunhas da competição foram as populações nômades de pescadores que se mudam ao sabor da transformação das dunas, provocada pelo vento. "Cerca de 20 garotos dos lençóis trabalharam como voluntários para orientar os pilotos", conta Arilo de Alencar. A curiosidade desses meninos, como a de José Ferreira, Francisleine e Maria Dourado, deu a dose de magia à aventura de desbravar o Brasil.