Passavam das 18 horas do domingo 6 quando a dona de casa Elza Rodrigues, 53 anos, escolhia o arroz que faria para o jantar. Na sala, a filha, o genro e os três netos dividiam os sofás com os olhos pregados no programa Domingo legal, do SBT. De repente, os três vira-latas começaram a latir e, sem que Elza tivesse tempo para conferir o que se passava do lado de fora, um homem saltou pela janela, caindo por cima do botijão de gás encostado na parede. Começava naquele momento o martírio da família Rodrigues, refém por mais de oito horas de um dos 345 presos que saíram de forma escandalosa pela porta da frente da cadeia pública do Putim, em São José dos Campos, interior de São Paulo, na maior fuga já registrada no País.

Hipertensa, Elza mora a apenas 200 metros do presídio e, embora não fosse a primeira vez que um detento invade sua casa – como se isso fosse uma coisa normal –, ela levou alguns segundos até conseguir entender o que aquele homem fazia ali no meio da sua cozinha.

O fugitivo mandou que ela fechasse toda a casa, pediu roupas para se trocar e ameaçou as crianças. Minutos depois um helicóptero sobrevoava o enorme descampado atrás da casa, o que fez com que o bandido ficasse ainda mais nervoso. "Ele ajoelhou no chão e implorou para não o entregarmos", lembra. Depois de algumas horas, cansado, exigiu que Elza estendesse um cobertor no chão. Quando finalmente ele cochilou, ela e o genro foram até a janela dos fundos e acenaram um pano branco para o helicóptero, mas, para desespero dos dois, os policiais não viram o sinal. Desesperada, em uma última tentativa, Elza colocou fogo em uma tocha feita com jornais velhos e acenou mais uma vez. "Parecia que eu estava dentro de um filme", diz. Alguns minutos depois, sete policiais militares entravam em sua casa para capturar o foragido. As marcas dos pés sujos de lama deixadas por ele na parede da cozinha não a deixam esquecer as horas de terror pelas quais a família passou. O pior é que cenas de cinema como essa se repetem. A fuga do Natal passado ainda é recente em sua memória. "Viver aqui é o inferno."

Há suspeitas de que a recordista fuga do Putim foi facilitada pelo carcereiro Paulo Roberto da Silva Filho. Ele e o diretor do presídio foram afastados do cargo pelo atual secretário de Segurança, Marco Vinício Petreluzzi, e engrossam uma estatística surpreendente. Em 17 meses, só em São Paulo, 1.245 carcereiros foram indiciados por ser suspeitos de fecharem os olhos, ou até mesmo dar uma mãozinha para que prisioneiros deixassem cadeias e distritos. Isso significa que não é só dona Elza que teve a infelicidade de morar ao lado de um barril de pólvora. As fugas nas delegacias encravadas no meio das cidades são cada vez mais frequentes. Assim fecha-se o ciclo onde o cidadão está cada vez mais indefeso. O policiamento falha na rua, a Justiça demora a julgar e, quando o culpado finalmente é preso, a corrupção escancara-lhe as grades. No Putim havia circuito fechado de tevê, sistema de vigilância, travas eletrônicas, alarme e sistema de rádio e, mesmo assim, os 345 presos fugiram. O aparato tecnológico não garantiu a segurança dos moradores de São José dos Campos.

 

Abrindo os portões Na manhã da segunda-feira 7, quatro fugitivos bateram no vidro da janela da casa de Cristina Gonçalves da Silva. Só ela e o filho Genivaldo, de seis anos, estavam em casa. "Eles tinham facas, queriam roupas para trocar e me pediram para ligar o rádio para saber notícias sobre a fuga", diz. Três dos foragidos obrigaram-na a fazer café e preparar o almoço enquanto o quarto bandido tomava um banho. Às 14 horas, depois que eles reviraram toda a casa, dois saltaram a cerca enquanto os outros dois saíram pela porta obrigando-a a acompanhá-los até um ponto de ônibus. Indignada ela viu na estrada uma viatura passar por eles sem parar. "Quase saltei na frente do carro de tanto desespero." Na despedida, um dos detentos deu a ela um isqueiro como recordação pela "colaboração". Com medo de novas invasões, Cristina abandonou a residência e foi buscar abrigo na casa da mãe, a dois quilômetros e meio dali. As fugas, de tão rotineiras, já viraram motivo de chacota. "Que fuga nada. Eles abrem os portões", diz Fátima Maria Pinto, que mora atrás do Putim. "Aquilo ali não é pena máxima. É pena fácil. Eles são soltos, porque dali não têm como escapulir", reforça o segurança de uma granja, Sidnei da Silva, 21 anos. Depois de quatro dias, 191 condenados ainda estavam nas ruas.