Merita, 11 anos, toma banho várias vezes ao dia. Ela repete que está se sentindo suja e seu corpo não é como o de outras meninas. Há cinco meses essa criança albanesa adquiriu este traumático hábito. Merita foi estuprada por vários soldados sérvios na província de Kosovo. Tenema Mansarray, 18 anos, tem um olhar distante, de quem perdeu o riso. Aos nove anos, ela e a irmã Safi foram capturadas pela tropas militares de Serra Leoa. Tenema ficou presa durante cinco anos e foi testemunha do brutal assassinato da irmã. “Tentamos fugir, mas fomos capturadas. Levei 50 chicotadas e o pior de todos os castigos: vi quando mataram a minha irmã e ainda me mandaram enterrar o corpo dela”, conta. Merita e Tenema estão nas estatísticas mais horripilantes das vítimas das guerras da década de 90. Apenas em Serra Leoa, 90% das crianças sofreram abusos sexuais e até bebês tiveram suas pernas amputadas. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), nos últimos dez anos, dois milhões de crianças morreram, seis milhões ficaram deficientes, 12 milhões estão desabrigadas e nada menos que dez milhões de crianças ficaram com traumas psicológicos em consequência das guerras. “Há mais crianças em conflitos hoje no mundo que em todos os séculos”, diz a diretora-executiva do Unicef, Carol Bellamy.

Se as atrocidades contra essas frágeis vítimas aumentaram, cresceram também as iniciativas pelos direitos da criança em conflitos armados. No ano passado, pela primeira vez, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu como prioridade a proteção de crianças e adolescentes em campos de batalha. “Estou pessoalmente engajado e viajando para as áreas de conflito, conversando com as partes envolvidas para que se dê atenção à questão do menor nas guerras”, disse a ISTOÉ Olara Otunnu, responsável pela secretaria-geral das Crianças em Conflitos Armados da ONU. Entre as iniciativas de Otunnu está o estabelecimento de parcerias das Nações Unidas com a União Européia para financiar projetos de reabilitação nos mais de 40 conflitos que afligem o mundo neste momento. Otunnu também propõe a criação de um tribunal internacional que julgue especificamente crimes de guerra cometidos contra crianças. Outra idéia em discussão é a formação de uma cadeia de rádio, A Voz da Criança, pela qual os jovens trocariam experiências de como se reintegrar à sociedade civil e como vencer os traumas de guerra. “No século XX, o mundo evoluiu muito tecnologicamente, mas ainda estamos na idade das trevas quando nos referimos à situação dessas crianças. A comunidade internacional precisa agir e este é o grande desafio para o próximo milênio”, afirma Otunnu.

A ação das ONGs – Mas de nada valeriam as ações da ONU se não fossem os esforços de várias organizações, a maior parte delas não-governamentais (ONGs), que estão atuando em mais de 100 nações. O pedagogo moçambicano Viriato Castelo Branco, 30 anos, deixou a capital Maputo para morar seis meses em Kosovo pela ONG Visão Mundial. A difícil missão de Viriato é treinar pessoas em Mitroevica (40 quilômetros da capital Pristina) para que ajudem a curar as profundas cicatrizes da infância na guerra. O pedagogo levou na ba–gagem a larga experiência de oito anos de trabalho com menores que sofreram as atrocidades na guerra civil de Moçambique. Em Kosovo, cerca de 65% dos refugiados são crianças e a maior parte delas está com suas famílias totalmente esfaceladas. Não há escolas primárias e meninos e meninas se amontoam em tendas improvisadas em meio aos escombros para receber aulas.

Quase todas as crianças que chegam aos centros de recuperação apresentam algum tipo de distúrbio depois de terem sido testemunhas de cenas de horror. “Elas têm um forte sentimento de rejeição, medo de se aproximar dos adultos, falam baixinho e tremem o corpo só de ouvir um grito”, descreve Viriato. A rea-bilitação exige paciência e muita dedicação desses agentes humanitários. Inicialmente, um exercício psicossocial utilizado por especialistas é o desenho. Com as ilustrações no papel, as crianças começam a retratar sua história de vida, sentindo-se mais à vontade para falar. A organização Médicos Sem-Fronteiras, Nobel da Paz em 1999, reuniu em uma exposição gravuras com os relatos mais dramáticos de meninos e meninas da Bósnia. Entre os desenhos, está o de Teodora, de cinco anos. O pai da menina foi encontrado numa vala no massacre de Ovcara. Teodora não conseguia falar sobre a perda do pai. Então desenhou uma menina com os pés suspensos ao lado de um balão. “Esta sou eu e este é um balão que voou para longe de nós”, explicou ela a um psicólogo. Os pés suspensos eram ela sem querer tomar contato com a dura realidade e o balão representava a morte de seu pai.

A perda dos familiares é apenas um dos pontos que a assistência humanitária tem de estar preparada para enfrentar. O pior é quando a família inteira é mutilada por minas terrestres. Em Angola, João Pedro, 11 anos, perdeu o pai, a mãe e uma das pernas em uma mina. Como muitas crianças angolanas, João Pedro foi parar em um centro assistencial na capital Luanda. Lá ele conheceu a escritora angolana Filomena Carreira que estava de volta ao país depois de 24 anos de Brasil. A escritora decidiu montar o Projeto Angola para, segundo ela, “ajudar a reconstruir o país”. Em sua primeira viagem, em agosto de 1999, a escritora levou 11 mil toneladas de alimentos, centenas de brinquedos distribuídos em três campos de refugiados. “Eu tenho três filhos e não podia mais ficar no Brasil assistindo àquela tragédia”, relata. Filomena conta com doações como as do médico ortopedista Nelson Nolé de Sorocaba (interior de São Paulo), que doou 33 próteses. Em Angola, que tem uma população de 12 milhões de habitantes, existem cerca de nove milhões de minas espalhadas pelo país. Lá também a maior parte das vítimas é de crianças e mulheres. Apesar do equipamento moderno nos centros de saúde, não há pessoal especializado para cuidar dos mutilados que chegam a usar anos a mesma prótese. As crianças mal podem andar e muito menos brincar. “Eles se sentem como animais”, diz Filomena.

Engajamento – Muitas das crianças refugiadas acabam sendo adotadas por parentes ou vizinhos e caem numa armadilha ainda pior. A organização Human Rights Watch denuncia que em Serra Leoa, por exemplo, as crianças acabam sendo escravizadas pelos pais adotivos ou obrigadas a servir sexualmente os homens que as abrigaram. Graça Machel, viúva do presidente moçambicano Samora Machel e atual do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, elaborou durante dois anos um estudo sobre esses traumas infantis, O Impacto de conflitos armados sobre a criança. Nele ela reporta: “As crianças são capazes de cometer piores atrocidades que um adulto justamente porque são incapazes de discernimento. E ainda uma criança órfã é facilmente aliciada como soldado ou prostituta.”

Na guerra civil colombiana, que já dura 40 anos, uma luz desponta no final do túnel: o Movimento Infantil pela Paz. Num país onde entre cinco vítimas fatais uma é criança, na mira de narcotraficantes ou da guerrilha, o trauma transformou-se em ação para Mayerly Sánchez, 16 anos, uma das líderes do movimento que foi indicada ao Nobel da Paz em 1998. Quando tinha apenas oito anos, Mayerly perdeu seu melhor amigo, Milton, esfaqueado numa disputa entre gangues no bairro pobre de Soacha, em Bogotá. Apoiada pela Visão Mundial, a menina passou a fazer parte de um grupo que tem como estratégia principal mobilizar a sociedade civil convocando outras crianças a se engajar em ações pela paz, como passeatas e campanhas nacionais.

“Os adultos agora nos escutam muito mais”, diz Mayerly. “Ensinamos as crianças que o importante é não pegar em armas. Se elas participam de gangues e da guerrilha, é porque se sentem desprotegidas e acham que vão ter poder com uma arma na mão”, diz Monica Godoy, 17 anos, que dividiu a indicação do Nobel com Mayerly. Assim como sua amiga, Monica também achava que sua vida não tinha mais saída até entrar para o movimento. “Eu era uma criança sem sonhos, sem ilusões. Já tive familia-res sequestrados pela guerrilha e já assisti a muitos tiroteios. Hoje digo às autoridades que não falem palavras bonitas, mas façam ações concretas.” O engajamento precoce parece apontar uma alternativa para sensibilizar organizações e governos para o drama dos inocentes.