A aparente capitulação de Slobodan Milosevic veio não com os habituais rugidos desafiadores, mas com sussurros. No 72º dia de bombardeios a seu país, o presidente iugoslavo finalmente aceitou os termos de um acordo de paz costurado entre o ex-premiê russo Viktor Chernomyrdin e representantes dos países da Organização do Tratado do Altântico Norte (Otan). Na quinta-feira 3, o Parlamento iugoslavo aprovou, por 136 contra 74 votos, os termos impostos pela aliança ocidental. As bases do acordo são: a rápida retirada de todas as forças militares e paramilitares sérvias da região do Kosovo; ocupação daquele território por uma tropa internacional – estimada em 50 mil soldados – fortemente armada e tendo a participação da Otan e da Rússia; retorno e acomodação dos refugiados kosovares, que devem ganhar maior autonomia, mas não a independência; reconhecimento da integridade do território iugoslavo e desarmamento do Exército de Libertação do Kosovo. Os bombardeios só cessarão quando estas condições forem implantadas. Enquanto Milosevic colocava seu jamegão no papel, pelas ruas de Belgrado mantinha-se a quietude das derrotas, quebrada por explosões a distância.

"A Iugoslávia aceita o documento de paz trazido pelos mais altos representantes da União Européia e da Rússia", dizia o lacônico comunicado do governo, com referência aos emissários Viktor Chernomyrdin e o presidente filandês Martti Ahtisaari, mas sem mencionar a Otan. Também não foram empregadas fanfarras no anúncio de um possível final para os tormentos enfrentados pela população do país. A percepção dos iugoslavos é de que houve a capitulação. O que se ouvia nas ruas era a inevitável pergunta: se era para aceitar tais termos, por que não o fazer antes que as bombas começassem a cair? O ressentimento era palpável.

Essa hostilidade foi claramente expressa pelo Partido Radical Sérvio, que rejeitou totalmente o acordo de paz. Tanto que seus representantes no Parlamento fecharam questão contra a proposta: partiu de suas fileiras os 74 votos (quase um terço daquela casa) de oposição. "Nós votamos contra o acordo porque acreditamos ser inaceitável a retirada de nossas tropas, debaixo de bombardeio da Otan", disse o líder dos radicais, o vice-primeiro ministro Vojislav Seselj. "Nós não vamos ficar sentados neste governo, esperando as tropas da Otan chegarem no Kosovo", completou, dando mostras de que a coalizão de conveniências que mantinha Milosevic no poder está ruindo como os edifícios bombardeados em Belgrado.

 

Cautela Todos estes sinais deveriam fazer a festa na Casa Branca, mas o governo americano não queria comemorar tão cedo. "Estamos otimistas, mas cautelosos. Slobodan Milosevic tem um histórico de quebra de promessas", diria o presidente Bill Clinton, logo depois de selar o acordo. Ele não declarou vitória, pois na certa imaginava a enorme dificuldade que terá também com os refugiados. Sabe-se que dos calculados 850 mil kosovares que estão na Albânia e na Macedônia, muitos não pensam em voltar para uma terra onde foram tão maltratados. Milhares de famílias já disseram que só voltam mortas. Depois deste conflito, a convivência harmoniosa entre sérvios e kosovares-albaneses ganha contornos impossíveis.

Outra preocupação que mantinha contida a alegria americana dizia respeito à Rússia. Não só aquele país aparece como grande condottiero da paz, recuperando inclusive sua histórica influência nos Bálcãs, como ainda impunha sua presença independente entre as tropas que monitoram o acordo. Washington também suava sobre a questão da hierarquia de comando destas tropas internacionais. Apesar da inicial oposição sérvia e russa, o acordo de agora diz claramente que as tropas da Otan vão participar do monitoramento – inclusive com calculados sete mil americanos. Mas não ficou estabelecido ainda com quem estará o comando supremo desta armata brancaleônica. "O que se imagina é uma solução do tipo daquela encontrada na Bósnia, com as tropas ocidentais tendo comando americano e as tropas russas ganhando uma boa margem de autonomia", explicou o subsecretário de Estado Strobe Talbott.

E é bom lembrar que a todas estas preocupações soma-se ainda o fato de que a turma do Exército de Libertação do Kosovo não assinou pacto algum. Seus guerrilheiros terão de ser desarmados na marra. Do contrário, o acordo azeda. As tropas russas, inicialmente imaginadas para o controle da parte norte do Kosovo – aquela com maior significado histórico e dominância sérvia – terá de ocupar outra freguesia. Do contrário, se teria uma percepção de partilha do território – o que se procura evitar a todo custo.

No papel, o acordo parece claro, mas nas entrelinhas existem grandes margens de manobra. E manobra é o que mais se exigirá de Slobodan Milosevic. Ele não é um Saddam Hussein, que tem controle rígido sobre corpo e alma da nação que oprime. Seu reinado sempre foi mais precário do que o do iraquiano. Agora, imperando numa terra arrasada, com a economia jogada décadas no passado, tropas estrangeiras ocupando o país e perdendo apoio à esquerda e direita do espectro político, o ditador passa cada vez mais da condição de líder supremo para a de sobrevivente desesperado. O pior é que, após ter sido indiciado por crimes contra a humanidade, pelo tribunal internacional de Haia, Milosevic nem sequer pode deixar seu trono e aproveitar o exílio dourado.