Lulu Santos é daquelas pessoas de fácil combustão. Quando o assunto o inflama, ele levanta da cadeira, gesticula e não sossega até concluir seu raciocínio coordenado, que agora viaja pelas teorias da astronomia e da geofísica. Astro pop de primeira grandeza, Lulu tem transformado os conhecimentos áridos em poesia cantada por milhares de pessoas. Consigo mesmo, atualmente reflete sobre a implacabilidade do tempo sem, no entanto, lutar contra ele. Aos 46 anos, o cidadão carioca Luiz Maurício Pragana dos Santos deixou à vista as centenas de fios grisalhos de seu cabelo que embranquece desde os 28. "A maturidade vai me tornar um fazedor mais eficiente", diz ele, avisando que seus próximos espetáculos serão assistidos em mesas e não mais nas grandes pistas de dança como vinha acontecendo. A tradução da fase atual está exposta em seu recente álbum, Calendário, 15º de uma carreira de 24 anos, no qual o cantor e compositor de delícias como Toda forma de amor e Tudo azul redefiniu, lapidou seu entrosamento com a música eletrônica dentro daqueles moldes pop que ele faz tão bem. Na entrevista a seguir, Lulu Santos fala da sua relação com a guitarra, com a música, seu público e, num momento de extrema afetividade, segreda a fórmula do não-casamento com a apresentadora, atriz e escritora Scarlet Moon de Chevalier para quem dedica a canção Navegadora, faixa do novo disco. Neste instante não houve fogo que disfarçasse o brilho molhado de seus olhos.

ISTOÉ Recentemente você disse que solo de guitarra é como latim, uma língua morta. Por que um artista como você, que fez fama com um jeito personalizado de tocar guitarra, assume agora esta postura?
Lulu Santos – Em primeiro lugar é necessário dizer que, se não fosse o latim, a gente sequer falava. Depois que eu li essa frase pinçada e isolada achei que ela era mais forte do que no contexto em que falei. Ficou como se eu tivesse algum desprazer de tocar guitarra, quando não é absolutamente nada disso. Ao mesmo tempo é necessário registrar que eu fiquei conhecido do público brasileiro, não pela guitarra que eu toco, mas pelas canções que eu fiz no decorrer do tempo. Embora continue comprando guitarra como um adolescente. Recentemente comprei três.

ISTOÉ – Qual é a sua relação com a guitarra?
Lulu –
Normalmente os guitarristas têm com ela uma relação mais fálica do que como se fosse uma companheira. Com exceção do B.B.King, que chama a guitarra dele de Lucille e a põe no peito. Guitarristas de rock botam aqui (mostra, apontando para o sexo). As minhas guitarras têm nome, Rosita, Juanita, Dolly, Blondie, Verdona. São nomes de mulher por acaso.

ISTOÉ – É muito difícil uma mudança radical de estilo?
Lulu – Sou o rei de dar apontadas para uma outra direção. Às vezes preciso dar um tiro muito alto numa direção que não é o meu caminho para eu ter sustentação. Isso é uma imagem, uma analogia gráfica para uma situação que descreve com muita precisão a realidade que me percorre. O disco Eu e Memê Memê e eu só não tem a alcunha de tecno porque não se usava isso naquela época. Mas é um disco de pista, dance para usar a palavra certa. É inflamação geral. Passada a inflamação, a parte purulenta sai do meu sistema e o que é alimentício continua.

ISTOÉ – Como você se sente, na pele de artista, virando o milênio?
Lulu – Eu não tenho nenhuma sensação especial com essa data. Não sou oprimido por calendários. Minha grande preocupação com a passagem para o ano 2000 é o bug do milênio. Mas existe uma angústia milenarista que é praticamente embutida no ser humano. Eu vou contar de qualquer forma porque é da minha organização mental. O tempo originalmente era medido pelo passar dos astros. O grande relógio, na realidade, passa por cima da gente. Eu tenho prazer e interesse por astronomia. A humanidade parece péssima, mas consegue voar, consegue colocar um satélite em órbita. E isto tudo me interessa.

ISTOÉ – Este teu interesse pela astrofísica é recente?
Lulu –
Só nos últimos dois anos e meio, três. Começou com o meu interesse pelos maias. Tenho tesão em geofísica. Eu aproximo essas coisas do ponto de vista poético.

ISTOÉ – Estamos falando no tempo, você não tem medo de assumir os cabelos brancos para platéias sempre muito jovens?
Lulu – Não são brancos, são grisalhos. E as platéias não são exclusivamente jovens. As pessoas que falam comigo na rua são de todas as idades. Este ano meus espetáculos serão com mesas. Estou muito cansado, muito desanimado de ter que repetir aquele modelo que eu fiz durante dez anos.

ISTOÉ – Esta sensação é física?
Lulu – Sinto um cansaço moral de ter que imaginar que tenho que exercer um personagem, que é a idéia que as pessoas têm de mim. A ansiedade de agradar é custosa.

ISTOÉ – Até que ponto você criou e acreditou neste personagem?
Lulu – Acho que se trata de um aperfeiçoamento do ator que faz esse personagem. O ator vai ficando mais tarimbado. Eu quero saber usar os meus recursos de energia com mais sabedoria.

ISTOÉ – É a maturidade se instalando?
Lulu – Eu antes talvez tivesse um pouco de medo de imaginar que podia ser um pouco maduro demais para fazer o que eu faço. A maturidade vai me tornar um fazedor mais eficiente. Eu sou uma máquina. A idade não tem um peso para mim.

ISTOÉ – O que mudou na tua relação com o público?
Lulu – Eu vou experimentar isso agora. Só digo que estava muito desgostoso de parecer para mim mesmo apenas uma marionete pop.

ISTOÉ – Quando você não está gravando ou fazendo shows, entra em algum estado de ansiedade?
Lulu –
De julho para cá eu não fiz shows. Levei seis meses e três dias fazendo esse disco, e para mim a maior maturidade é aprender a se relacionar com o seu tempo. Fazer do passar do tempo algo prazeroso. Então eu leio, estudo, faço exercício físico. É tudo o que todo mundo tinha que fazer se não estivesse absolutamente escorraçado por condições econômicas e sociais de todo peso.

ISTOÉ – Pode um artista viver em total serenidade?
Lulu –
O que eu estou procurando é desenvolver um espaço em mim mesmo no qual possa observar o meu próprio tufão interior, como quem estuda um fenômeno meteorológico. Estou procurando um entendimento da minha pulsão de morte.

ISTOÉ – A excitação da criação requer necessariamente outros estados de euforia como drogas ou álcool?
Lulu – Acho que não. Não posso afirmar. Não estou fazendo uma apologia contra as drogas. Mas imaginar que o sujeito é capaz de criar com alguma influência externa, não. É tolice.

ISTOÉ – Neste disco você dedica a canção Navegadora para a Scarlet Moon. Muitos casais gostariam de saber o segredo do seu relacionamento "eterno" com ela.
Lulu – Muitos perguntam: "Vocês são casados?" E eu digo não, que a gente até já foi. No sentido de morar junto no mesmo domicílio durante 12 anos. Atualmente não somos casados. Mas em primeiro lugar, o amor que eu tenho vem dela. O amor que eu processo na minha existência, o que eu aceito, o que me percorre vem dela. Tenho um espaço enorme para a existência dela dentro de mim. Acho que não teria estrutura pessoal para estar conversando com alguma segurança se não fosse a influência dela. E, por outro lado, a gente não é casado e a relação é muito melhor do que a de um casamento convencional. A gente continua se relacionando afetivamente. Moramos em casas separadas.

ISTOÉ – Se você tivesse o poder de eliminar algum gênero musical, qual deles você eliminaria?
Lulu – Eu jamais aceitaria fazer esse papel. É fascista.

ISTOÉ – O que não toca no seu cd player definitivamente?
Lulu – Não toca essa produção mais popular, de duplo sentido. Sequer sei dessas coisas. Eu admito que é a arte que tem a capacidade de espelhar um povo, mesmo em seus piores momentos. Acho que o mais necessário para o mundo, nessa altura do calendário, é olhar para trás, é fazer psicanálise de si próprio. O Brasil precisa se reprocessar com urgência. Discutir o papel que a Revolução de 64 teve na quebra da coluna vertebral, cultural, política, social e econômica brasileira. Discutir a nível mundial o espoliamento, a exploração, o assassinato que o Primeiro Mundo promoveu nos últimos 500 anos de tudo que fosse diferente de si próprio. E fazer uma autocrítica da humanidade e perceber: isso vai mal.

ISTOÉ – Em relação ao Brasil, este tipo de música reflete diretamente uma doença?
Lulu Não tem ninguém preocupado com crianças botando a bunda para cima e causando lordose. O que vai acontecer com a sexualidade daquela criança, com a afetividade daquela criança? Que valores uma mulher brasileira de hoje pode ter, sendo que o único valor dela é o c…? O que será da menina brasileira daqui a dez anos que está sob esta influência? A própria sociedade tem que se manifestar.

ISTOÉ – Que análise você faz do rock brasileiro de agora?
Lulu – Ah! É muito bacaninha. Acho que rock, só brasileiro. Não quero nem saber de rock internacional, de música de branco. Não sou um grande consumidor de rock, mas acompanho. Está mais perto de mim do que a bunda music. Acho Charlie Brown muito bacaninha (cantando): "Parecia inofensiva, mas me dominou, me dominou…" Eu vi o cantor na televisão, fazendo assim no vídeo (faz um gesto de quem está batendo cocaína), parecia cocaína. É genial ter uma canção que fale assim de cocaína. E serve para um cara falar com gente parecida com ele, que anda de skate, bicicleta. Por que não? Não se pode impedir as pessoas de ter uma manifestação que esteja à frente do que você supõe. Acho Raimundos uma maravilha. Aquele moleque é um superperformer, a banda é poderosa, as idéias são boas. Um grupo que chama Raimundos é melhor do que Off Spring. Off Spring para mim é sem mola.

ISTOÉ – Existe chance para o Brasil?
Lulu – Ah! Vai saber. Não vou te responder isso não. Depende de cada um de nós (risos). Faça o seu papel. Tenha a sua indignação. Use a sua indignação como um emblema. O que falta para nós, nós povo brasileiro, é essa indignação de dizer não. Eu tinha vontade de ter um programa de televisão para acolher denúncias de mortais comuns contra políticos. A estrutura do poder no Brasil é o que se vê. Não preciso ficar aqui articulando. Abra o jornal. Daqui a pouco vai precisar de uma CPI da CPI. E uma CPI da CPI da CPI. Mas que haja. Que essa sanha de moralização continue. Porque só isso vai nos dar uma sensação de que não estamos sendo empastelados, tornando-nos um povo sadomasoquista que gosta de ver os outros sofrer porque não tem capacidade de reagir por causa do próprio sofrimento.