Mais anticlímax, impossível. Assim como um velho personagem de novela, o bug foi sem nunca ter sido. Muita gente sacou dinheiro antes da meia-noite de 31 de dezembro ou passou o réveillon de plantão à toa. Os esquemas de segurança montados por bancos, governo e empresas foram exagerados para um bug que passou tão despercebido quanto um mosquito. Em todo o mundo, gastaram-se cerca de US$ 500 bilhões para corrigir uma simples falha de programação: a ausência de quatro dígitos para representar o ano. No Brasil, o governo estima que as providências para evitar uma baixa geral nos sistemas representaram uma tungada de R$ 2 bilhões no orçamento federal. Só o Banco Central pagou R$ 1 bilhão pela reforma do departamento de informática. É o suficiente para construir 71 mil casas populares no Estado de São Paulo. Na somatória geral, governo e iniciativa privada torraram entre R$ 10 bilhões e R$ 12 bilhões em preparativos contra o monstro que não apareceu. Significa quase quatro vezes mais do que o Consórcio Brasil pagou pela Companhia Vale do Rio Doce, maior produtora de minério de ferro do mundo, que foi privatizada em 1997 por R$ 3,3 bilhões.

Dinheiro jogado fora? Só o tempo dirá, já que os investimentos foram preventivos. “Trabalhamos pouquíssimo, como esperávamos, o que quer dizer que para o Brasil o bug praticamente não existiu”, gaba-se o coronel Marcos Aurélio de Oliveira Ramos, coordenador do Plano Nacional de Contingência do Ministério da Defesa. Nunca a indústria de tecnologia recebeu tanta atenção e verba. Em compensação, todos os projetos de tecnologia planejados para 1999 foram adiados. Um estudo da consultoria PriceWaterhouseCoopers revela que três em cada quatro grandes e médias companhias pretendem aproveitar o primeiro trimestre deste ano para colocar em prática os planos adiados. Ainda que os alarmistas apontem para eventuais efeitos retardados da falha, o mundo sobreviveu sem catástrofe à maior ameaça da era digital.

Nada de vírus eletrônicos, ataques terroristas e invasões de sistemas. Muitas empresas aproveitaram o pretexto da falha digital para fazer uma faxina em seus departamentos de tecnologia. Trocaram computadores antigos e instalaram programas novos. É como planejar o conserto do banheiro para reparar um vazamento e terminar reformando a sala, a cozinha e a área de serviço.

Na semana passada já se falava num sucessor da falha, o “buguinho”, como ficou chamado o dia 29 de fevereiro. Pela primeira vez um ano terminado em dois zeros será bissexto. O temor é que os computadores não reconheçam o dia 29, uma terça-feira. Na pior das hipóteses, considerariam fevereiro como um mês de apenas 28 dias. “Isso é bobagem. O pior já passou. E se aconteceu alguma coisa séria, dificilmente as empresas e bancos irão divulgar”, assegura Fernando Parra, presidente da DTS, empresa de consultoria e venda de software que faturou US$ 15 milhões com trabalhos relacionados à falha, o que representa 40% de sua receita. “Muita gente aproveitou para trocar antigos PCs pelo que há de mais moderno, o que elimina a possibilidade de erros futuros”, avisa Parra.

Prova de fogo – A verdadeira prova de fogo contra o bug aconteceu na segunda-feira 3. No primeiro dia útil de 2000, os incidentes foram poucos. Temia-se que na virada de 31 de dezembro de 1999 para 1º de janeiro de 2000 os computadores registrassem a data de um século atrás, 1º de janeiro de 1900. Diante dessa incorreção, havia o risco de os computadores irem a nocaute. Uma eventual pane nos sistemas poderia desencadear vá-rios acidentes e, em última instância, deixar um Estado inteiro sem água, luz ou comunicação. A ameaça era o imponderável. Por isso investiu-se tanto em medidas de precaução. Mesmo com tanta injeção de recursos, ainda assim havia duas hipóteses para a virada do ano. Poderia dar tudo errado – e por isso foi preciso montar esquemas de emergência em hospitais, cadeias, centrais telefônicas e aeroportos. Ou poderia dar tudo certo, como aconteceu, e a previsão de caos resultar num espetáculo patético. Como ninguém sabia o que esperar de uma ameaça digital, a alternativa foi preparar-se para o pior. E talvez por isso nada de grave tenha acontecido. Fora um fato bizarro aqui e ali.

Em Nápoles, as cortes judiciais fecharam suas portas depois de uma combinação macarrônica nas sentenças. O computador acrescentou 100 anos na pena de alguns presos e diminuiu o tempo de cadeia de outros em mais um século. Em Bergheim, na Alemanha, um vendedor dormiu com um saldo bancário medíocre e acordou milionário. Ao consultar seu extrato, deparou-se com o total de US$ 6,2 milhões, depositados em 1899. Na Dinamarca, o primeiro bebê do ano foi registrado com data de nascimento em 1900. De todas as ocorrências, porém, a mais séria foi um tilt nos sistemas de controle de satélites espiões do Pentágono, a sede do Departamento de Defesa americano. Com 12 horas de atraso, Washington reconheceu que, durante quase três horas, 24 satélites de espionagem deixaram de enviar informações. Justo nos EUA, país que investiu pelo menos US$ 100 bilhões para aplacar a fúria do bug. A impressão é de que foi muito barulho por nada. Mas ninguém quis correr o risco de ser pego de surpresa.