O astrônomo Ronaldo de Freitas Mourão fala em tornar o planeta vermelho habitável como saída para reduzir a superpopulação da Terra

Astrônomo brasileiro de maior projeção internacional, aos 65 anos e com 65 livros publicados, entre eles Atlas celeste (Ed. Vozes), com mais de 50 mil exemplares vendidos, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão afirma o que só os escritores de ficção científica ousavam prever: será viável colonizar Marte. Segundo o cientista, o projeto poderia minimizar o problema da superpopulação na Terra. Ao se referir às últimas pesquisas da Nasa, a agência espacial americana, Mourão diz que se inicia agora um novo capítulo na história da exploração do espaço, com o lançamento da nave Mars Odyssey 2001, na semana passada. É a primeira missão interplanetária da Nasa desde a perda de duas naves-robôs enviadas ao planeta vermelho em 1999. A Mars Odyssey vai explorar a composição do solo, medir o nível de radiação e observar as características biológicas. A odisséia é fundamental para planejar o envio de uma missão tripulada a Marte, até 2020. Conselheiro da União de Astronomia Internacional e membro da Mars Society, instituição que reúne cientistas americanos e europeus, Mourão garante aos céticos que dentro de algumas décadas será possível iniciar os planos para a colonização do planeta. Sem medo de ser chamado de louco ou ilusionista, Mourão admite que um dia será possível ouvir, em Marte, as músicas de seus compositores preferidos, Stravinsky, Beethoven e Mozart. A seguir, trechos de sua entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – Quais as chances de haver vida em outros planetas?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Existe uma grande probabilidade de haver vida inteligente em outros sistemas. Por que o sistema solar, que está numa posição periférica na Via Láctea, seria o único com um planeta habitado? Seria muita pretensão do homem imaginar que há vida inteligente apenas no planeta Terra. No futuro será possível provar isso.

ISTOÉ – Por que o sr. afirma que estamos em uma posição periférica?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A Terra e o sistema solar como um todo ocupam posição secundária, pois estão muito longe do centro da galáxia. De acordo com as últimas descobertas, existem mais de um bilhão de galáxias no mundo. Algumas teorias sugerem que o núcleo da Via Láctea seja um buraco negro, mas isso não está comprovado.

ISTOÉ – O que o faz crer na existência de extraterrestres?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A lógica permite que criemos uma expectativa de que eles existam. Através da radioastronomia, da detecção de sinais de ondas, os astrônomos estão sempre procurando escutar o espaço. Já surgiram sinais que podem ser de uma civilização inteligente em outro planeta. Mas ainda é necessária uma longa caminhada. Com a descoberta de novos planetas e sistemas, a questão da existência de vida fora da Terra passa a ser tratada com mais seriedade. Escapa da esfera especulativa dos ufólogos. Sai do terreno do misticismo para o plano da ciência.

ISTOÉ – Há algumas décadas imaginávamos que o homem construiria colônias em outros planetas. Isso ainda é só ficção?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A humanidade terá de esperar algumas décadas para essa aspiração se tornar mais clara e segura. O que existe é a possibilidade de se criar condições favoráveis para a vida em Marte. Nos Estados Unidos, por exemplo, através da Mars Society e da Planetary Society, estão sendo feitas várias pesquisas nesse sentido. A Nasa também admite a viabilidade desses projetos. Prova disso é que os recursos destinados a eles não foram atingidos pelo recente corte de orçamento da agência.

ISTOÉ – Como seria a habitação em solo marciano?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Marte tem uma atmosfera muito árida e temperatura muito baixa. Para a habitação humana ser possível tudo isso terá de ser alterado, através de sistemas vegetais, de colocação de espelhos que provoquem o descongelamento das calotas polares, com o início de um efeito estufa que permitiria o aquecimento lento, com a garantia de uma atmosfera respirável, com vegetações que transformariam o dióxido de carbono em oxigênio, como as árvores e as plantas fazem. Isso será importante para minorar o problema da superpopulação da Terra.

ISTOÉ – Não seria mais fácil habitar primeiro a Lua e, depois, Marte?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Em Marte já existe atmosfera, o que facilita a colonização. Na Lua seria preciso tirar oxigênio das rochas. De qualquer forma, a exploração de ambos tem que ser feita, na primeira etapa, por robôs. A primeira expedição com robô a Marte foi em 1997. A segunda está prevista para 2003. Outras já estão sendo programadas. Em menos de 100 anos muita coisa importante vai ser feita, a não ser que aconteça um retrocesso da humanidade.

ISTOÉ – O desinteresse da Nasa pela Lua significa que ela perdeu o charme?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A Lua não perdeu a prioridade nas pesquisas. Até porque ela pode se tornar, no futuro, uma grande plataforma para a exploração de Marte. A Lua pode, inclusive, substituir as estações espaciais, com ampla vantagem. Ela continua com o charme suficiente para despertar o interesse dos cientistas e dos poetas.

ISTOÉ – Por que ainda há pessoas que duvidam que os astronautas realmente pisaram na Lua em 1969?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Isso não tem sentido, é pura histeria. O que são, então, as amostras trazidas por americanos e russos?

ISTOÉ – Qual a verdadeira importância de Plutão?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Alguns cientistas defendem a idéia de que ele é o principal asteróide de um cinturão situado em torno de Netuno. Mas há outros que insistem em classificá-lo como um planeta. (Há uma corrente científica para a qual Plutão não é de fato um planeta).
ISTOÉ – O que se sabe sobre outros planetas fora do sistema solar?
Mourão – Todos os 50 planetas descobertos nos últimos dez anos são de dimensões superiores às da Terra. Isso indica, com mais nitidez, a existência de sistemas planetários semelhantes ao sistema solar.

ISTOÉ – O que é a astrobiologia e que benefícios ela pode gerar?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A astrobiologia está sendo reconhecida como uma ciência voltada para as pesquisas sobre as condições de vida em outros planetas, e pode contribuir até na busca pela cura do câncer. Os estudos avaliam os efeitos da gravidade sobre o ser humano e a resistência que tem de ser criada no organismo para que ele suporte as condições adversas das missões espaciais.

ISTOÉ – Já existem contribuições relevantes da pesquisa espacial para a saúde?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A pesquisa espacial permitiu que fossem criados Centros de Tratamento Intensivo (CTIs) mais avançados, porque, assim como as condições de um paciente do CTI de um hospital têm de ser acompanhadas, o astronauta é, também, monitorado a distância, e isso precisa ser feito com uma segurança extraordinária. A exigência de um micromonitoramento eletrônico permitiu condições especiais para a produção de corações artificiais. No caso do marcapasso exige-se uma eletrônica muito confiável. Existem ainda os ganhos proporcionados pelas pesquisas sobre a microgravidade nas estações espaciais, como a internacional, da qual o Brasil participa. Essas pesquisas vão permitir o desenvolvimento de certos produtos farmacêuticos. Elas permitirão, ainda, que a cristalização de produtos químicos seja feita com mais pureza, beneficiando o tratamento de várias doenças.

ISTOÉ – A pesquisa espacial pode garantir tecnologia para o uso da energia solar?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A energia solar está se tornando viável porque ela é o meio mais fácil de captar energia no cosmos e por isso vem sendo usada nas estações espaciais, o que tende a baixar o preço dos equipamentos. No final da década de 90 a Nasa pesquisou o lançamento de uma central solar para satisfazer às necessidades de energia elétrica do Terceiro Mundo. Ou seja: eles já realizam pesquisa para vender tecnologia para os países pobres. O governo já deveria ter uma política para o aproveitamento da energia solar como fonte alternativa, até porque ela não precisa de torres de transmissão. Já é possível, no Brasil, transformar a luz solar em energia. A atual crise energética deveria servir de alerta para o aproveitamento desse tipo de energia não poluidora.

ISTOÉ – Houve descaso do poder público com a ciência?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Sim, e ainda há. As empresas privatizadas deveriam ser obrigadas a formar grupos de pesquisa. Já imaginou a Petrobras privatizada e uma empresa estrangeira receber o acervo do núcleo de pesquisa em águas profundas? Ela tem a liderança desta tecnologia. Na prática, isso é vender soberania. O brasileiro é criativo, e essa história de “Estado mínimo” é para boi dormir, pois nas grandes potências o Estado é forte, especialmente nos Estados Unidos. É forte na defesa da tecnologia avançada e da soberania. As universidades devem receber recursos do governo para a realização de pesquisas genéticas e sobre a biodiversidade do País, especialmente da Amazônia. Afinal, não podemos pagar royalties por medicamentos feitos pelas empresas estrangeiras com base na biodiversidade brasileira!

ISTOÉ – O desenvolvimento da tecnologia ajudou a derrubar a União Soviética?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Ficou difícil manter a “cortina de ferro” com a evolução das telecomunicações. Quando os americanos adotaram o projeto Guerra nas Estrelas, no governo Reagan, sacrificaram mais ainda a economia soviética e depois, com a vitória dos americanos no que se poderia chamar de “terceira guerra mundial”, no plano espacial, os Estados Unidos ficaram com um poder muito forte, desequilibrando a influência em áreas como a América Latina.

ISTOÉ – O que foi essa terceira guerra mundial no espaço?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Ela foi travada nos laboratórios, onde os soldados eram os pesquisadores e os generais, coordenadores das pesquisas. Teve um caráter político, mas sobretudo econômico, que mobilizou bilhões de dólares. A burocracia estatal e a corrupção no alto escalão soviético impediram que houvesse resposta rápida aos ataques dos americanos nos campos científico e tecnológico. Foi uma guerra em que a União Soviética ganhou as primeiras batalhas, principalmente a do Sputnik, em 1957, e a de Yuri Gagarin, que em 1961 deu a volta em torno da Terra. A queda da Mir representou a última derrota da antiga União Soviética nessa guerra, e nem a Rússia, agora capitalista, foi capaz de evitar esse desgaste, que também afeta a sua imagem. Os russos têm um projeto para a Mir 2. A guerra continua, mas com um cenário diferente, em que a globalização estimula a hegemonia americana, e o foco é para a exploração do rendoso mercado espacial.

ISTOÉ – A burocracia estatal causou prejuízos ao programa espacial soviético?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

A administração do projeto Apolo XV foi excelente, um exemplo de administração, o que não houve na antiga União Soviética. Havia na época três projetos diferentes em Moscou, enquanto nos Estados Unidos só tinha o Apolo. Depois do Sputnik russo, houve fracassos americanos, mas depois os Estados Unidos se recuperaram. Estamos completando 40 anos do feito do russo Yuri Gagarin, que cunhou a célebre frase: “A Terra é azul.”

ISTOÉ – A China interessa ao Brasil como parceiro espacial?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Sem nenhuma dúvida que sim. A China tem os foguetes de longa marcha, com uma tecnologia bem avançada, e o Brasil tem um acordo com a China que permite o desenvolvimento de um satélite sino-brasileiro. Esse acordo é de interesse do Brasil, por abrir a perspectiva de acesso à tecnologia chinesa.

ISTOÉ – Mas o fracasso de uma experiência espacial não seria muito negativo em um país com carências em áreas básicas como a saúde?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

O fato de lançarmos duas, três ou cinco vezes para colocar um satélite em órbita não quer dizer nada. Os americanos, russos, europeus e chineses tiveram vários fracassos. No tempo da União Soviética houve fracassos que não foram divulgados. Mas até o fracasso no lançamento de um foguete ou de um satélite é importante porque leva a conhecimentos.

ISTOÉ – O Brasil faz investimentos nesse setor?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Muito reduzidos. Apesar de termos iniciado nossas pesquisas em 1961, estamos bem atrás da Índia, que começou seu programa espacial na mesma época. E um dos principais pesquisadores, Hugo Piva, foi afastado do programa espacial por picuinhas.

ISTOÉ – Não há risco de a tecnologia ser usada para fins bélicos?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Qualquer pesquisa pode ter uso bélico. Se partirmos desse princípio, não vamos fazer pesquisas biológicas, porque elas poderiam ser empregadas para interesse militar. Neste novo milênio, a soberania vai depender da capacidade de dominar certas tecnologias estratégicas, até mesmo para manter uma opção firme pela paz, como é o caso do Brasil.

ISTOÉ – Não há risco de a tecnologia ser usada para fins bélicos?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Qualquer pesquisa pode ter uso bélico. Se partirmos desse princípio, não vamos fazer pesquisas biológicas, porque elas poderiam ser empregadas para interesse militar. Neste novo milênio, a soberania vai depender da capacidade de dominar certas tecnologias estratégicas, até mesmo para manter uma opção firme pela paz, como é o caso do Brasil.

ISTOÉ – Qual a importância da Base Espacial de Alcântara, no Maranhão?
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Por estar próxima da linha do Equador, ela facilita a entrada de um satélite em órbita, e por isso vários países estão interessados em lançar satélites de Alcântara, que está em posição melhor do que a base de Kourou, na Guiana Francesa. Até os australianos querem fazer lançamentos aqui. O governo deve fazer investimentos maciços em Alcântara, e já começam a ser negociados contratos internacionais para o lançamento de satélites na base brasileira