Quando o caça chinês F-8 chocou-se com o avião espião americano EP-3E, no dia 1º de abril, estavam entrando em rota de colisão duas culturas separadas por um abismo. O acidente, a 176 quilômetros da costa sul da China, revelou que as diferenças entre países podem ser maiores do que a homogeneidade pretendida pela chamada globalização. As relações entre os Estados Unidos e a China exigiram trabalhos de recauchutagem ainda mais amplos do que os requeridos pelo avariado EP-3E, ou corriam o risco de se despedaçarem como o F-8. Na lista de possíveis avarias estavam o comprometimento dos US$ 156,3 bilhões do comércio bilateral e da nervosa acomodação geopolítica conseguida na Ásia. Os chineses mantinham cativos o EP-3E e seus 24 tripulantes, obrigados a fazer um pouso de emergência na ilha de Hainan, e queriam a suspensão dos vôos de espionagem em seu território, além de um contrito pedido de perdão. Os americanos estavam dispostos apenas a dizer que “lamentavam” todo o episódio. Na terça-feira 10, um compromisso foi finalmente montado por representantes dos dois países, onde Washington diz por escrito “sentir muito” o incidente. No dia seguinte, a China anunciava que iria soltar os detidos e aceitava as desculpas americanas. Assim, no primeiro incidente internacional sério que enfrentou, o governo de George W. Bush deu a impressão de ter capitulado.

O documento elaborado explora e evidencia as diferenças entre as linguagens dos dois países. Na China, pedidos de desculpas são tão importantes que existem profissionais no mercado contratados especialmente para isso. A própria palavra “desculpas” pode ter muitos significados, variando os graus de arrependimento. Já na língua inglesa, a palavra “sorry” é um pedido de desculpas mais brando, algo como “sinto muito”. O que os chineses desejavam era uma “apology”, que exprime muito mais contrição e reconhecimento da culpa. Caso essas nuances semânticas tivessem sido levadas ao pé da letra, o acordo poderia fracassar. O malabarismo vernacular permitiu jogar água numa fogueira de animosidades que ameaçavam queimar a complicada estrutura de relações bilaterais.

A Embaixada da China em Washington recebeu uma carta da gerência da supercadeia de lojas Wal-Mart relatando ter recebido milhares de telefonemas e e-mails de consumidores furiosos com a prolongada retenção dos prisioneiros americanos. Vários movimentos de boicote a produtos chineses começaram a ser articulados. No Congresso americano também eram ouvidos brados de fúria. “A posição intransigente dos chineses aumentou as probabilidades de o Legislativo aprovar a venda de mais armamentos sofisticados a Formosa, inclusive o sistema de defesa Aegis”, disse a ISTOÉ o deputado democrata Charles Rangel, de Nova York.

O problema é que a liderança chinesa também se deparou com o crescente descontentamento dos radicais do Zhongnanhai, o Congresso do Povo (Parlamento). Principalmente dos militares, que nos últimos anos perderam prestígio.

Resta saber como reagirá a linha-dura americana. O presidente George W. Bush vinha contentando o apetite destas feras ao declarar que considerava a China um “concorrente estratégico”, substituindo o termo “parceiro estratégico”que vinha sendo usado pelo governo anterior. Também sinalizava que estava disposto a armar melhor os militares de Formosa. Ao dizer “sorry” aos chineses, fica a impressão de que por baixo da pele de lobo usada por Bush está um cordeiro. Será necessário endurecer mais ainda no futuro para recuperar o respeito da matilha.