Ao primeiro olhar, Donbá Suiá, habitante do Parque Indígena do Xingu, parece ter uma saúde inabalável. O semblante plácido inspira tranquilidade. No entanto, já passou por momentos delicados, durante tratamento feito por uma equipe médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), instituição que na próxima semana comemora 35 anos à frente de um programa criado especialmente para índios. Donbá é o único com rim transplantado entre os povos que vivem às margens do rio Xingu, numa reserva que reúne 14 tribos. Entre elas, estão os suiás, o povo de Donbá. Antes de fazer o transplante de rim, há três anos, os cirurgiões explicaram o procedimento à família do paciente. Procuraram deixar claro que, sem a intervenção, Donbá não superaria a insuficiência renal que o mantinha na rede havia tempo. Assimilado o argumento, veio a notícia mais terrível: o órgão seria retirado de um cadáver, já que nenhum parente estava habilitado para a doação. Isso abalou os índios, que temem feitiços e fantasmas. Mesmo depois da exaustiva viagem da aldeia até o Hospital São Paulo, na capital paulista, onde o suiá se tratava, o pai do paciente armou-se de disposição para brigar com os médicos. Mas o filho aceitou ser operado. Donbá estava com medo até minutos antes de entrar na sala cirúrgica. Foi quando ouviu palavras confortadoras do pajé Doni Suiá, que apareceu diante dele para dizer que tudo daria certo. A cirurgia foi, de fato, bem-sucedida. Hoje, o paciente está bem. O detalhe curioso nessa história é que Donbá conta ter visto o pajé durante a operação ao lado da equipe do hospital. Doni, entretanto, se encontrava no parque.

Misticismo – Os médicos de Donbá não se incomodam com a versão fantástica do paciente. Para eles, o misticismo ajudou a realimentar as esperanças do suiá. “Foi importante do ponto de vista psicológico”, diz o clínico Jorge Carlovich Filho, coordenador do Ambulatório do Índio, do Hospital São Paulo. Esse serviço especial recebe pessoas de diversos lugares do País. Desde grupos amazônicos que mal entendem o português até os pankararus, povo que hoje quase não tem mais as suas características originais – eles residem em favelas da capital paulista e não são chamados de índios pelos vizinhos e, sim, de nordestinos.

O caso de Donbá condensa o desafio que é cuidar da saúde dos povos indígenas brasileiros, tarefa que em 1999 saiu das mãos da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do Ministério da Justiça, para ser responsabilidade exclusiva da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), ligada ao Ministério da Saúde. A história do suiá mostra que um bom projeto de medicina alia a prática da ciência ao respeito à cultura das tribos. E é assim que tem feito a Unifesp.

Atualmente, existem perto de 350 mil índios no País. A maior parte distribuída em 568 reservas, que representam 12% do território nacional. Entre eles, cresce o número de pessoas afetadas por problemas conhecidos pela população indígena como doenças de branco. Não é apenas gripe, que dizima homens e mulheres desde que o Brasil foi descoberto. Hoje caciques e pajés conhecem o perigo da tuberculose. Os índios padecem também com diabete, hipertensão e doenças sexualmente transmissíveis. Um dos males que mais assustam é a aids, ainda sob controle. Já foram detectados 29 casos. De acordo com a Funasa, as doenças mais graves são malária, tuberculose, infecções respiratórias e diarréia. As duas últimas respondem por 60% dos casos registrados pela fundação e atingem principalmente crianças. A tuberculose também merece atenção dos médicos, já que se espalha facilmente devido às condições que encontra nas aldeias. Os índios vivem em ocas pouco iluminadas e ventiladas (às vezes, as únicas aberturas são as portas de entrada e saída), um ambiente favorável para a doença.

Cigarro – A justificativa para o aumento das “doenças de branco” é a proximidade dos caraíbas (expressão comum entre os índios para designar gente estrangeira). No entorno do Parque do Xingu, por exemplo, há fazendas e cidades. O contato com os brancos alterou o modo de vida dos índios. “Antes, o tabaco era mastigado. Hoje muitos fumam cigarro”, exemplifica Ubiratan Moreira, um dos diretores da Funasa. Os médicos alertam as tribos, mas é difícil conter a ânsia pelos costumes de fora, como o uso de açúcar e sal industrializados. Com a mudança de hábitos alimentares, a diabete floresceu, assim como a obesidade e a hipertensão.

Evitar a entrada das iguarias nas aldeias é tão difícil quanto impedir os índios de ter relações sexuais nas cidades. “Desde 1992 estamos falando de doenças sexualmente transmissíveis, explicando como se coloca camisinha”, revela o médico Douglas Rodrigues, coordenador do programa de saúde do Xingu e professor da Unifesp. Antes a orientação era dada para quem saía do parque. Agora, a contaminação acontece nas aldeias. Os médicos passaram a abastecer de preservativos os postos montados na reserva. Mesmo assim, existem complicações. “Quisemos queimar camisinhas usadas,
mas uma tribo não permitiu porque para eles o sêmen é sagrado”, conta. Como os municípios próximos ao parque não adotam programas contra doenças sexualmente transmissíveis, a ameaça de epidemias ronda as tribos. Sem esse apoio, os médicos são obrigados a lutar solitariamente contra o problema. “Nesse aspecto, temos a sensação de que não estamos conseguindo fazer muita coisa”, desabafa Rodrigues.

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Os desafios dos médicos não param por aí. Eles precisam driblar a falta de equipamentos para os diagnósticos e tratamentos e as precárias condições sanitárias das aldeias. Lá não existe nada parecido com um sistema de esgoto e o rio Xingu serve para banho, abastecimento de água, lavagem de objetos e limpeza de alimentos. Por causa disso, os profissionais da saúde fazem trabalhos de esclarecimento. E em todos os momentos levam em consideração a tradição e os “doutores” locais, os pajés e raizeiros (conhecedores das propriedades terapêuticas das plantas). É por compreender a cultura indígena que alguns médicos gozam de muito prestígio. Rodrigues, 45 anos, é um deles. Sua chegada às aldeias é um acontecimento. Mal adentra uma tribo, logo é rodeado por adultos e crianças.

Transição – Com Roberto Baruzzi, professor-titular de Medicina Preventiva da Unifesp, não é diferente. Ele é um dos fundadores do programa da universidade e, aos 71 anos, é reverenciado como um grande cacique. “Começamos num cenário de muita malária. Agora, vive-se uma fase de transição, com a introdução de doenças levadas pelos brancos”, afirma. O trabalho desses médicos depende muito da sensibilidade e da confiança que têm no diagnóstico feito sem a tecnologia. Quem acompanha uma consulta no meio da aldeia pode se surpreender com a simplicidade da situação. Na falta de uma maca, serve um banco de madeira. Em certas ocasiões, o paciente chega a ser examinado ao ar livre, e diante de uma platéia curiosa. O pajé Tacumã Kamaiurá, uma lenda dentro do parque, confia no trabalho dos colegas. “Doença de branco é curada por branco. Eles salvam os índios da tuberculose, da pneumonia e do câncer. Eu cuido de doença de índio”, explica. Entre as enfermidades que trata estão distúrbios psicológicos, como ataques súbitos de demência. O pajé, claro, não usa esses nomes. Para ele, são problemas originados por espíritos de animais ou por feitiços encomendados por outros índios. “Já andei por todo o Xingu para curar as pessoas. Sou como um médico”, afirma Tacumã, que aprendeu os segredos das ervas com uma entidade divina que chama de “espírito do peixe”. O ofício de Tacumã é respeitado. Nenhum médico interfere em seu trabalho quando ele está em ação.

Os índios brasileiros precisam de mais assistência. Em julho, havia vaga para médico no Xingu. Apesar do salário atraente (cerca de R$ 6 mil), não foi fácil encontrar candidatos porque a idéia de viver nas aldeias não seduz muita gente. Um dos primeiros obstáculos é a longa distância até as cidades próximas do parque, como Canarana (MT).
Mas o cenário promete melhorar. A Funasa conta hoje com 152 médicos, 256 enfermeiros e 114 dentistas no total. Até dezembro quer chegar a 200 profissionais de medicina, 295 de enfermagem e 183 de odontologia. No Xingu, em outubro, começa um convênio entre Unifesp e Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). As duas universidades planejam também formar agentes indígenas de saúde bucal, nos moldes do que já é feito no programa de medicina. Índios são preparados para atuar como auxiliares de enfermagem. Caso de Marcelo Kamaiurá, apelidado em sua aldeia de “dono do remédio” (moangajat, em tupi). O treinamento de agentes de saúde é um passo muito importante para os descendentes dos primeiros habitantes do Brasil. “No passado, fizemos muito mal para eles. Nós nos esforçamos para nos redimir, mas não dá para conseguir tudo”, comenta Rodrigues. Numa ocasião em que visitava um xinguano internado num hospital, o médico preocupou-se com o ar saudoso do paciente. Simpático, perguntou-lhe do que mais sentia falta. A resposta o desconcertou. “De ver longe”, suspirou o índio.


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