Com suas longas asas e bicos afiados, a águia americana está apertando o cerco em torno de sua presa histórica: a América do Sul. Os vôos rasantes dos americanos estão deixando a cúpula das Forças Armadas brasileiras cada vez mais preocupada. Em conversas reservadas, os militares de alta patente não escondem a sua apreensão com as pressões cada vez mais fortes que os Estados Unidos têm feito sobre o governo Fernando Henrique Cardoso para que apóie a sua investida bélica na vizinha Colômbia, na porta de entrada da Amazônia, com a utilização de perigosos agentes biológicos, de efeitos imprevisíveis, e de armas químicas para matar os cultivos de coca e papoula exatamente numa área dominada pela guerrilha esquerdista. O gigante adormecido deu seus primeiros sinais de insatisfação – tímidos, é verdade – através do Itamaraty. Diante da possibilidade de transformação do nosso vizinho num Vietnã, o próprio ministro da Defesa, Geraldo Quintão, não escondeu as divergências entre o Brasil e os EUA.

O assunto promete pegar fogo na reunião dos presidentes sul-americanos, no próximo dia 31, em Brasília. O chanceler venezuelano José Vicente Rangel colocou mais lenha na fogueira ao anunciar, segundo a agência France Presse, que os presidentes Hugo Chávez e Fernando Henrique Cardoso vão examinar juntos, antes da reunião, a petição que o Foro de São Paulo (entidade que agrupa partidos de esquerda latino-americanos) apresentará ao conjunto dos presidentes pedindo a suspensão da ajuda americana militar ao Plano Colômbia. O chanceler da Venezuela foi além, ao afirmar que seu país, o Equador, o Brasil e a União Européia estão inquietos com relação aos aspectos militares do plano, que tem como objetivo acabar com o narcotráfico, mas também exterminar com as duas guerrilhas que atuam há 36 anos no país: as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN), ambos em pleno processo de negociação com o desgastado governo de Andrés Pastrana, com um índice de impopularidade de 71%, segundo pesquisa de opinião divulgada na semana passada.

Protesto – Coincidência ou não, a tropa de choque do governo americano desembarca na América do Sul a partir da semana que vem, para tratar de diversas pendengas. A ofensiva vai começar justamente no Brasil, com a visita da secretária de Estado Madeleine Albright, que depois segue viagem para Bolívia, Equador, Argentina e Chile. O próprio presidente Bill Clinton vai visitar a Colômbia no dia 30, justamente na véspera da reunião dos presidentes sul-americanos, para reforçar seu apoio ao Plano Colômbia. A acolhida brasileira a Albright não será das mais calorosas.

Na quinta-feira, o MST ressuscitou os velhos lemas da década de 60 como “Ianques, go home”, numa grande manifestação, em Brasília, que reuniu mais de dez mil sem-terra durante o IV Congresso Nacional do movimento. Primeiro eles pararam em frente à Embaixada americana, onde jogaram milho, numa ação de protesto contra os transgênicos, considerados um símbolo da agricultura industrial defendida pelos Estados Unidos, e queimaram uma bandeira americana. Em seguida, os sem-terra passaram pelo Ministério da Agricultura para criticar a sua política de apoio ao “modelo americanizado”.

Sabatinado por integrantes da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados – que incluíram nos anais da comissão a matéria publicada na última edição da ISTOÉ sobre a ameaça da guerra biológica, química e militar patrocinada pelos Estados Unidos na Colômbia –, Quintão admitiu que o governo Fernando Henrique Cardoso está apreensivo. “Qualquer auxílio à Colômbia deve ser prestado dentro das linhas mestras que tradicionalmente têm orientado a ação externa brasileira, como a não-intervenção, o respeito à autodeterminação e a não-ingerência em assuntos internos de outros países”, afirmou, mantendo posição contra as iniciativas dos americanos de atuar no país para combater o narcotráfico e a guerrilha. Ele defendeu uma posição do Brasil completamente contrária ao que preconizam os EUA, afirmando que o problema do narcotráfico é de natureza policial e não deve ser enfrentado por forças armadas regulares.

Dúvidas – No meio militar não são poucas as desconfianças com relação às reais intenções dos americanos. O ex-ministro da Marinha Mário Cesar Flores, por exemplo, lança dúvidas sobre a contribuição dos Estados Unidos na questão da segurança da América do Sul, em artigo publicado no mês passado na revista Panorama, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Lembrando que os Estados Unidos já apoiaram regimes autoritários na época da guerra fria, ele analisa: “Os Estados Unidos agora apóiam a democracia, que parece servir melhor à abertura comercial dos países que importam seus produtos ou, pelo menos, é mais exposta à influência liberal americana (de duvidosa mão dupla) e de organizações relacionadas com o comércio internacional do que com os autoritarismos comumente simpáticos às políticas protecionistas.” Em seguida, o ex-ministro indaga: “Os Estados Unidos seriam tão antagônicos ao regime Fujimori ao tempo da ameaça do Sendero Luminoso? Os Estados Unidos ficarão contrariados se a Colômbia ‘escorregar’ para um regime forte que controle a guerrilha associada às drogas?”

Com um ambiente tão espinhoso, os diplomatas americanos trataram de preparar o terreno para a chegada de Albright, tentando desfazer a idéia de que estão agindo como verdadeiros xerifes na América do Sul. “A visita da secretária Albright enfatiza a importância da América Latina para a política externa dos EUA. E o fato de iniciar sua visita pelo Brasil evidencia o papel construtivo do país em promover a união da América Latina no início do século XXI”, disse o embaixador americano no Brasil Anthony Harrington.

“A pretensão dos americanos é envolver o Brasil no conflito porque eles não querem que suas tropas desembarquem na Colômbia. Os americanos temem que a guerrilha assuma o controle do país, com a fragilização do governo colombiano”, criticou o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), integrante da Comissão de Defesa, que no ano passado sobrevoou toda a fronteira do Brasil com a Colômbia, numa missão de parlamentares, com acompanhamento de militares da região. “Reservadamente, muitos militares nos falam que a guerrilha não representa um perigo para o Brasil. A guerrilha quer tomar o poder em seu país. A grande preocupação dos militares é com os americanos e com a velha ameaça de internacionalização da Amazônia”, contou.

Cocainização – Nos bastidores, os americanos tentam assombrar autoridades e militares brasileiros com os fantasmas da invasão da guerrilha e do narcotráfico. “O Brasil não pode aceitar esse discurso falso de que pode se transformar numa base guerrilheira ou do narcotráfico. Os americanos estão pressionando. Eles já dizem que se planta cocaína na Amazônia. Se os EUA conseguem provar que o lado de cá da Amazônia está se cocainizando, ganham a opinião pública mundial para o velho sonho de internacionalizar a região”, acusou outro integrante da comissão, o deputado João Hermann (PPS-SP). Mesmo parlamentares governistas da comissão, como Átila Lins (PFL-AM), compartilham da desconfiança com relação aos americanos.
“Há muita apreensão na minha região de que com a intervenção armada dos Estados Unidos, sob o pretexto de combater o narcotráfico, a Colômbia se torne uma espécie de Vietnã e isso acabaria nos envolvendo militarmente no conflito. O Brasil deveria ter sido pelo menos informado sobre as pretensões dos americanos na Colômbia. Afinal, essas ações vão ter reflexo no nosso país”, ressaltou.

Colaborou Eduardo Hollanda