Prestes a iniciar um estudo com estudantes na Bahia, neurocientista americano lembra os horrores contra bebês cometidos pelo governo comunista da Romênia

Quando o pesquisador Charles Nelson, professor de pediatria da Universidade de Harvard, começou a conduzir um estudo em orfanatos na Romênia no ano 2000, teve que fazer um pacto com sua equipe: ninguém podia chorar na frente das crianças. Quem não aguentava a emoção tinha de sair da sala discretamente. A regra foi imposta devido às condições nas quais os órfãos se encontravam. Abandonados; com problemas de crescimento e desenvolvimento; deitados olhando para o teto sem receber nenhum estímulo e às vezes até amarrados a suas camas. Os resultados da pesquisa impulsionaram algumas mudanças na legislação e nas políticas públicas do país europeu. 

Agora, o médico prepara as malas para vir ao Brasil, no dia 16 de agosto, para conduzir um estudo comparativo sobre desenvolvimento cerebral entre alunos de escolas públicas e privadas de Salvador. Fazem parte do grupo de pesquisadores duas brasileiras: a neurologista Juliana Porto, também pesquisadora de Harvard, e a fonoaudióloga Fernanda de Queirós, pesquisadora associada do Núcleo de estudos de Neuromodulação da Universidade Federal da Bahia. 

O estudo é promovido pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), grupo que surgiu em 2011 e reúne a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal; o Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), também em São Paulo; o Centro sobre Desenvolvimento Infantil e o Centro para Estudos sobre a América Latina David Rockfeller, ambos da Universidade de Harvard. Antes de desembarcar em Salvador, Charles Nelson conversou com a ISTOÉ sobre a pesquisa nos orfanatos romenos e seus projetos para o Brasil. 

   orfanato.JPGABANDONO: Orfanato na Romênia sem ninguém cuidando dos bebês
 
ISTOÉ – Você começou a estudar as crianças nos orfanatos romenos em 2000. A pesquisa continua?
Charles Nelson – Sim. Quando começamos, elas eram bebês de seis meses a dois anos. Agora estão com cerca de 12, e estamos terminando de processar os dados coletados mais recentemente. Esperamos vê-las de novo quando elas começarem a completar 15 anos. 
 
ISTOÉ As crianças continuam nas instituições ou foram adotadas?
Nelson – O estudo abrange 136 crianças, de seis orfanatos. Metade, ou seja, 68, foi encaminhada para famílias adotivas temporárias. Uma pequena parte foi devolvida a suas famílias biológicas e algumas poucas foram adotadas permanentemente. A outra metade continuou nas instituições. Também temos um grupo que controla 72 crianças que sempre viveram com suas famílias, para comparação. 
 
ISTOÉ – Esse processo de institucionalização das crianças começou durante o governo comunista. Qual era o objetivo?
Nelson – Quando o líder comunista Nicolae Ceauşescu assumiu o poder, em 1965, começou um grande experimento de engenharia social. O governo criou uma série de políticas para aumentar a população do país e fortalecer a nação, como tornar ilegal o aborto e qualquer método contraceptivo e cobrar taxas de casais que tinham menos de três filhos. Além disso, convenceu as famílias de que o Estado poderia criar seus filhos com mais competência, e construiu instituições para abrigar essas crianças. Os pais sentiam-se confortáveis em deixar seus filhos nos orfanatos. As famílias tinham muitas crianças e não conseguiam cuidar delas. Então davam para o Estado criar. O país chegou a ter 170.000 crianças “órfãs”.
 
ISTOÉ – E depois do fim do regime comunista, em 1989, esses orfanatos continuaram existindo?
Nelson – Sim. Em parte porque a cultura se manteve, os pais sentiam-se confortáveis em mandar seus filhos para as instituições. Isso começou a mudar em 2002, quando apresentamos os primeiros resultados do nosso estudo. As famílias começaram a se sentir envergonhadas quando mostramos que as crianças que colocamos em lares adotivos temporários estavam se desenvolvendo muito melhor. Isso, e mais a pressão da União Europeia, levou ao fechamento de várias instituições, ao aumento da quantidade de lares adotivos e a medidas para desencorajar as famílias a abandonarem suas crianças. 
 
ISTOÉ – Você já declarou que a experiência de conhecer esses orfanatos foi horrível, porque viu muitas crianças com problemas de desenvolvimento, nanismo, estrabismo, e até amarradas a camas. O que te impressionou mais? 
Nelson – Não sei nem por onde começar. Quando você vê crianças com distúrbios neurológicos, epilepsia, ou outros problemas cerebrais, é de partir o coração. Mas essas doenças acontecem por acidente, infelizmente. Erros durante ou depois da concepção acontecem. O que é desolador, no caso dessas instituições, é que esses problemas foram provocados nessas crianças. Eram bebês normais, que foram abandonados por suas famílias e criados por pessoas que não as queriam. Não foi um acidente da natureza, foi uma tragédia infligida a eles. Foi muito triste ver como elas se desenvolveram mal, ver crianças com QI muito baixo, muito pequenas, que não conseguem conviver bem com outras pessoas e que não têm ninguém que as ame. E também foi triste ver crianças com deficiências físicas severas que não recebiam nenhum tipo de tratamento, que eram praticamente abandonadas para morrer. As coisas melhoraram desde então, mas ainda não estão muito boas. 
 
ISTOÉ – Esses problemas de crescimento foram causados por má nutrição ou foi por outros fatores?
Nelson – Não foram por causa de desnutrição. Acreditamos que foi por algo que chamamos de “nanismo psicossocial”. Em condições de negligência severa, o cérebro para de produzir o hormônio do crescimento. Crianças nessa situação perdem cerca de um mês de desenvolvimento para cada um ou dois meses de negligência. Em minha primeira visita, vi um bebê que parecia recém-nascido, mas depois me disseram que ele já tinha um ano de idade. Crianças que hoje têm 12 anos têm a altura de uma de seis ou sete. Elas também têm atrasos no desenvolvimento da linguagem, QI muito baixo; cérebros atrofiados e problemas psiquiátricos graves, como ansiedade e transtorno de déficit de atenção. E muitas são o que chamamos de “indiscriminadamente amigáveis”. Podem se sentar no colo de um estranho e até ir embora com ele. Isso acontece porque elas nunca desenvolveram uma relação com ninguém que se importava com elas, é um mecanismo de compensação, uma maneira de conseguirem atenção, porque nunca ninguém prestou atenção nelas.   
 
ISTOÉ – E as famílias não sabiam como seus filhos estavam sendo tratados?
Nelson – Não. No regime comunista, o que contava era o coletivo, não o individual. Quando começamos nossa pesquisa, muita gente dizia que estávamos perdendo nosso tempo, porque as pessoas confiavam que o governo cuidava melhor das crianças do que elas. Geralmente os bebês abandonados vinham de famílias muito pobres, eram filhos de mães solteiras ou tinham nascido com problemas de saúde. Muitas pessoas no país dizem que nem sabiam da existência desses orfanatos, porque o governo controlava a mídia. 
 
ISTOÉ – Mas os pais nunca visitavam as crianças? Não percebiam que elas não eram bem tratadas?  
Nelson – Alguns visitavam. E achamos que era até pior, pois a criança passava a saber que tinha uma família que não a queria. Nós questionamos pais e mães, e eles disseram acreditar que os filhos não estavam se desenvolvendo bem porque eram deficientes. Esse era o argumento usado pelas instituições. Essas pessoas acreditavam que não faria diferença se colocássemos as crianças em lares adotivos. Mas, quando fizemos isso, elas melhoraram. Então a população começou a repensar o sistema. 
 
ISTOÉ – E as crianças que foram para os lares adotivos estão em melhores condições?
Nelson – Enquanto grupo sim, mas as que estão em melhores condições são as que foram encaminhadas antes dos dois anos de idade. Esse é um período sensível. Certas experiências precisam ocorrer em um determinado período de vida para que o desenvolvimento proceda normalmente. Em nosso estudo, descobrimos que, se as crianças são colocadas nos lares adotivos antes dos dois anos, em média, elas conseguem desenvolver o QI, a linguagem e laços de afeto. Para as mais velhas, não houve melhoria, elas estão semelhantes às que ficaram nas instituição. 
 
ISTOÉ – E por que esse período dos dois anos é tão crítico?
Nelson – Uma das regras que regem o cérebro é que ele depende de experiências para se desenvolver. O cérebro espera essas vivências para completar seu progresso. Se há uma lacuna nessas experiências, esse avanço sai dos trilhos. Nos primeiros anos de vida há um rápido desenvolvimento cerebral. Não que não haja uma evolução depois disso, mas, se pararmos para analisar, muitas de nossas habilidades básicas como andar, falar e pensar são criadas na primeira infância. Desde 2003, tornou-se proibido internar crianças abaixo de dois anos nas instituições na Romênia, a não ser que elas sejam deficientes.  
 
ISTOÉ – E quanto ao problema de estrabismo que vocês observaram nas crianças. Qual a causa dele?
Nelson – Não chegamos a estudar esse fenômeno formalmente. O que observamos é que cerca de 10% das crianças nas instituições eram vesgas. Por exemplo, se segurarmos um dedo em frente ao nosso rosto e o movermos, os olhos vão acompanhar. Essa habilidade é criada com a prática. Nas primeiras semanas de vida, os bebês treinam o olhar observando o rosto da mãe ou objetos da casa. Nos orfanatos, as crianças ficavam deitadas em seus berços, olhando para o teto branco. Não havia informação para elas praticarem esses movimentos dos olhos. Como resultado, os músculos se enfraquecem. Se a criança passar de dois ou três anos, fica muito difícil reverter essa condição. Lamento não ter pesquisado melhor esse problema, mas em um estudo como esse é preciso definir um foco e algumas coisas acabam sendo deixadas de lado. 
 
ISTOÉ – O senhor disse que os orfanatos romenos melhoraram desde que o estudo começou. Que mudanças foram colocadas em prática?
Nelson – O governo começou a criar formatos diferentes, como os “lares grupais”. Em vez de montar instituições com centenas de crianças, eles colocam cinco ou seis delas em “apartamentos sociais”, com alguns cuidadores. Provavelmente elas estão em melhores condições do que nos orfanatos, mas não tão bem quanto as que foram para os lares adotivos. Mas ninguém estudou esse sistema para comprovar que é melhor. E os cuidadores não investem tanto esforço, eles agem como babás, não como pais. E outro problema é que os pais dos lares adotivos não estão sendo treinados pelo governo para realizar atividades de desenvolvimento com as crianças. 
 
ISTOÉ – E as crianças mais velhas, continuam sendo mandadas para orfanatos?
Nelson – O que aconteceu foi o seguinte, quando o governo proibiu a internação de crianças abaixo de dois anos, começou também a fechar instituições e investir mais em lares adotivos. Mas, de alguns anos para cá, com a recessão econômica, o governo diminuiu esse investimento e voltou a colocar as crianças nos orfanatos. Não sabemos dizer por que muitos pais continuam a abandonar seus filhos. Há famílias pobres no mundo todo que não entregam suas crianças para adoção. Soubemos que, até quatro ou cinco anos atrás, a taxa de abandono infantil era igual à de 20 anos atrás. Agora parece que a situação está melhorando, já que o governo começou a promover políticas de incentivo para que os pais mantenham os filhos.  
 
ISTOÉ – Vocês chegaram a repetir esse estudo em instituições de outros países?
Nelson – Ainda não, mas temos um projeto no Chile. E, como vou para o Brasil no mês que vem para realizar outro trabalho, o Centro para Estudos sobre a América Latina de Harvard está tentando levantar informações sobre o número de crianças institucionalizadas no país. Podemos considerar uma pesquisa no futuro. Sei que o Brasil têm muitas crianças vivendo na pobreza e morando na rua, mas não sei como é a questão do abandono infantil. No Chile há uma lei horrível que determina que crianças abandonadas podem ser colocadas em lares temporários, mas a família que as acolhe não pode adotá-las permanentemente, então elas pulam de uma casa para a outra. 
 
ISTOÉ – E como vai ser a pesquisa que você vem desenvolver no Brasil?
Nelson – Nosso projeto vai analisar as funções executivas do cérebro de crianças de classes sociais baixas. Funções executivas são um conjunto de habilidades cognitivas, como capacidade de planejamento, habilidade de mudar de opinião quando recebe novas informações e memória de curto prazo. Essas funções se desenvolvem durante a adolescência e declinam na terceira idade. Nós sabemos que jovens que crescem na pobreza tendem a apresentar déficits nessas habilidades, talvez por falta de estímulo na infância. Então faremos um estudo comparativo em algumas escolas públicas e privadas de Salvador, com alunos entre 6 a 10 anos. Se nossos parâmetros funcionarem lá, poderemos expandir para outras populações e faixas etárias. 
 
ISTOÉ – E você já tem projetos para trabalhar em outras áreas do Brasil?
Nelson – Ainda não, mas quando eu visitar o país um dos meus compromissos será conversar com pessoas para tentar desenvolver alguns projetos. Pretendemos também conhecer orfanatos e instituições em São Paulo. Eu estive no Brasil no ano passado e visitei uma favela no Rio de Janeiro. Crianças que crescem em ambientes pobres e violentos são mais propensas a terem problemas de desenvolvimento. Pensei em projetar maneiras de testar essa ideia e criar intervenções que previnam esses problemas.