Gritos de comemoração, longos abraços e lágrimas na manhã da terça-feira 8 em frente à Suprema Corte em Santiago, no Chile. A comemoração era pelo anúncio do fim da imunidade parlamentar do ex-ditador Augusto Pinochet. Membros do Grupo de Familiares de Presos e Desaparecidos cantavam o hino chileno empunhando cartazes com fotos de seus parentes assassinados e torturados. Foram mais de três mil desaparecidos durante a ditadura do general Pinochet (1973-1990). Entre os manifestantes, estava a filha do ex-presidente Salvador Allende, Isabel Allende. A decisão não surpreendeu os chilenos, mas sim a larga margem de votos: 14 contra seis juízes votaram pelo fim do privilégio do senador vitalício.

Com a imunidade parlamentar retirada, Pinochet torna-se um réu comum e poderá ser julgado pelas 158 acusações que pesam sobre ele, como responsabilidade de assassinatos e crimes de tortura. Seu destino agora fica depositado nas mãos do juiz Juan Guzmán, que anunciou uma investigação formal. Há um ano, Guzmán vem entrevistando oficiais chilenos para averiguar a participação do general na “Caravana da Morte” – uma espécie de esquadrão da morte contra os opositores ao golpe militar de 1973, liderado por Pinochet. A Caravana da Morte é acusada de ser responsável pelo sequestro e assassinato de mais de 72 pessoas. O ex-mandatário estaria diretamente envolvido em 19 mortes. A Suprema Corte chilena concluiu que as ordens tomadas pela “Caravana da Morte foram decretadas pelo próprio comandante-em-chefe”, ou seja, Pinochet.
O primeiro passo do juiz Guzmán será realizar um teste de sanidade mental em Pinochet. “A lei me obriga a pedir exames sobre as faculdades mentais do general por ele ter mais de 70 anos”, disse. O juiz também entrevistará o ex-ditador para que “ele explique se teve ou não participação nos acontecimentos”.

A defesa de Pinochet afirma que ele não irá se submeter aos testes que verifiquem suas faculdades mentais. Mas caso ele se recuse a ser examinado, Guzmán tem o poder de prendê-lo. O ex-ditador já amargou 73 dias em prisão domiciliar em Londres e foi justamente liberado pelas autoridades inglesas com o argumento de que não tinha condições psíquicas de enfrentar os tribunais, voltando para sua casa em Santiago em março deste ano. A prisão ocorreu a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón, que deu início ao processo.

Aos 84 anos, Pinochet demonstra cansaço e tem dificuldades em se locomover, como na terça-feira quando quase despencou ao lado de sua mulher, Lúcia, e partidários na sacada da janela de sua casa em Santiago. Porém, o ex-ditador não perde a pose. “Não é o fim do mundo, ninguém morreu”, reagiu Pinochet. Ele também prometeu circular uma “Carta aos Chilenos” em que clamará pelo amparo de seus seguidores. Durante dois dias, o ex-presidente recebeu a visita de vários de seus aliados das Forças Armadas. O general Ricardo Izurieta, que assumiu o comando no lugar de Pinochet em 1998, foi apertar a mão do amigo. “As Forças Armadas do Chile estão aqui para expressar seu apoio nestes tempos difíceis”, disse Izurieta. E, antes que viesse uma crítica do governo à sua visita, o general se adiantou: “Eu faço o que bem entender”, disse. Sem citar nomes, o presidente Ricardo Lagos devolveu o recado aos militares, descartando qualquer hipótese de reação negativa à decisão judicial. “O comando do nosso país está sob meu controle”, afirmou ele. Lagos é o primeiro presidente socialista a assumir o poder no Chile desde Salvador Allende.

Cooperação militar – Um general chileno disse a Istoé na quarta-feira 9 que “as Forças Armadas do Chile queriam uma definição sobre o processo do ex-presidente em território chileno, em nome da soberania chilena. Mas isso é um problema da Justiça, e não das Forças Armadas”. Outro motivo de os militares se afastarem da era Pinochet é a integração do Chile ao Cone Sul. Baseada nas cláusulas do Mercosul, brasileiros, chilenos, argentinos e paraguaios pretendem criar uma cooperação militar.

Uma consequência direta da decisão da Suprema Corte do Chile é abrir possibilidades para outras investigações contra outros militares não só da ditadura chilena como de outros países da América Latina. Dois dias depois do veredicto de Pinochet, o presidente do Uruguai, Jorge Battle, anunciou a criação da “Comissão para Paz”, que irá levantar os crimes da ditadura militar (1973-1985) em seu país.

É bem provável que o processo contra Pinochet se arraste ainda por alguns anos. Mas só o fato de ele ser hoje um cidadão apto a ser julgado pelas atrocidades que cometeu no passado é um ato histórico. Sebastián Brett, da Human Rights Watch do Chile, disse que “esta foi a decisão judicial mais importante tomada pela Justiça do Chile, porque mostra que os ditadores não estão acima da lei”.

Colaborou Hélio Contreiras (RJ)