Boletins de ocorrência e ações na Justiça destoam completamente do perfumado e estético mundo das artes visuais. Mas a maldição das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, que transformou em fiasco a festa organizada pelo governo em Porto Seguro, parece atingir até a prestigiada Mostra do Redescobrimento, Brasil + 500. Os desgastes no megaevento instalado no Pavilhão da Bienal e em outros dois prédios do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, são resultado das sucessivas denúncias de falta de pagamento a fornecedores, prontamente rebatidas pela Associação Brasil 500 Anos, organizadora da mostra. A instituição afirma que os valores foram quitados em juízo, por orientação de auditores. Para os 24 empresários que protestaram suas dívidas, a história é outra. Estão furiosos. Alguns, praticamente falidos. A empresa de iluminação Stage Production, cansada de bater à porta da associação, quase deixou os seis quilômetros de exposição às escuras, na terça-feira 1º. O vexame só não ocorreu porque a turma das artes estreou na delegacia e conseguiu liminar para evitar que a Stage retirasse dos pavilhões os 2,5 mil pontos de luz sob sua responsabilidade.

A Associação Brasil 500 Anos informa que tudo não passa de negócio pequeno. Os problemas estariam restritos a 2% dos fornecedores e os supostos débitos, somados, atingiriam apenas R$ 800 mil. Realmente, a quantia é irrisória se comparada ao vultoso valor já gasto com o projeto: R$ 60 milhões. Com esse dinheiro, poderiam ser construídos cinco museus de primeira qualidade, como o que está sendo erguido em Porto Alegre, pela Fundação Iberê Camargo, ao custo de R$ 12 milhões. “Ações como essas fazem parte da vida de qualquer empresa”, afirmou o conselheiro da Associação Pedro Paulo de Sena Madureira, em nota oficial.

No circuito das artes, porém, as supostas dívidas transformaram-se em estopim para uma crise e tanto. O dito superdimensionamento da mostra desencadeou brigas internas que podem comprometer a 25ª Bienal de São Paulo, já articulada com outros 41 países. A Associação Brasil 500 Anos, criada apenas para a mostra e parte da Fundação Bienal, que organiza a Bienal e outros eventos artísticos no Ibirapuera, virou alvo. A entidade é acusada por integrantes da fundação de ter assumido compromissos além dos suportáveis e de articular o adiamento da 25ª Bienal, de 2000 para 2002, para evitar a concorrência na captação de recursos no mesmo período.

“Não há fontes no mercado para dois eventos desse porte”, avalia o conselheiro da Fundação Jens Olensen. A Bienal está entre as três mostras de artes visuais mais importantes do mundo, superada apenas pela de Veneza, na Itália, e pela Documenta de Kassel, na Alemanha. E custa bem menos: cerca de R$ 24 milhões. Nas últimas semanas, importantes nomes da fundação pediram demissão por causa da falta de transparência no projeto 500 anos. Entre eles estão o curador Ivo Mesquita e a diretora do MAM, Milu Villela. Luiz Seraphico, presidente demissionário do Conselho da Administração da Bienal, também se mostra temeroso. “Não me prestaram contas e houve fraude em uma ata. Herdaremos os problemas da associação”, afirma.

A crise política chegou a ponto de pôr em xeque a itinerância da mostra, que deverá ser montada em 12 capitais brasileiras, além dos museus Guggenheim, de Nova York, e Fundação Gulbekian, de Lisboa, entre outros. O artista plástico Cildo Meirelles, autor da instalação Strictu, já tornou público que não tem a menor intenção de levar sua obra ao Guggenheim. Ele não quer se envolver na “grande confusão política” em que se transformou o evento. “Quando, no futuro, buscarem nomes dos artistas da mostra, não vão encontrar o de Aleijadinho, só o dos dirigentes”, declarou Meirelles à A Folha de S. Paulo.

Negligência – Enquanto os peixes grandes se engalfinham, os pequenos tentam reaver o dinheiro. Um dos pivôs do tititi cultural é Sônia Rossi. Dona da Stage, tem em seu currículo o Free Jazz Festival e o MorumbiFashion. Além de tentar retirar seu material, Sônia acusa a associação de negligência por expulsar dos pavilhões os técnicos responsáveis pelos 2,5 mil pontos de luz. “Deixaram tudo ligado por três dias, sem os técnicos. Poderia ter havido um superaquecimento, até um incêndio”, relata. O caso poderia não passar de um mal-entendido se já não estivessem registradas na Justiça outras 35 ações envolvendo o nome da Associação Brasil 500 Anos. A empresa de cenografia Marton e Marton é outra com problemas. Tem a receber R$ 300 mil. O mesmo ocorre com a conceituada transportadora Fink. “As ações objetivam evitar protestos de duplicatas supostamente sem lastro emitidas por alguns fornecedores”, afirma Sena Madureira, em nota. A Eurobrás discorda. Forneceu à associação 102 contêineres de metal para bilheterias, postos de assistência e lanchonetes e tem a receber R$ 80 mil. “Alegaram entrega fora de prazo. Tenho documentos e provo que não é verdade”, afirma o dono, Carlos Arasanz, antigo fornecedor da Fundação Bienal e da Fórmula 1. Pessimista com o desenrolar da novela, Arasanz deixa no ar uma pergunta: “Onde foi parar tanto dinheiro?”