No princípio é a escuridão total. Então, a luz se faz. Fachos cor de sangue brotam e dividem-se numa centena de glóbulos cintilantes no painel igualmente vermelho, ao fundo. Mais abaixo, sobre o piso encarnado, bailarinos de negro movem-se como se alguma espécie de vida começasse a se formar. Quando a voz gutural do ex-titã Arnaldo Antunes começa a repetir as palavras “mão pé, mão pé, perna”, os dançarinos saltam do chão numa explosão de movimentos. É de arrepiar. Está em cena o mais novo espetáculo do Grupo Corpo, que comemora 25 anos de carreira luminosa intitulando a produção justamente de O corpo. A 29ª coreografia da companhia mineira – que fica em cartaz no Teatro Alfa, em São Paulo, até o domingo 20, partindo depois para uma extensa turnê nacional * – mais uma vez mostra o nível de excelência da trupe de dança, a melhor do País. Mas existe mesmo um sangue novo neste admirável trabalho, e sua força não se resume ao revigorado elenco, que esbanja juventude e agilidade. O coreógrafo Rodrigo Pederneiras, 45 anos, explica que desta vez quis mergulhar de cabeça no universo urbano. Daí o convite a Arnaldo Antunes para criar a trilha do balé. Acertou em cheio. “Meu desejo foi mostrar o lado obsessivo da vida nas grandes cidades, este querer sempre mais e mais”, afirma Rodrigo, aliando a fala tranquila de mineiro ao tique nervoso de piscar os olhos sem parar.

Da nova coreografia, saiu a costumeira sensualidade e entrou o corpo-máquina. Durante 42 minutos, precedidos pela consagrada coreografia 21, os 19 bailarinos se entregam a um dos melhores trabalhos de Rodrigo – o Digo, como é chamado –, mente criativa da família Pederneiras, o clã por trás da companhia. O corpo é um balé tão bom quanto os antológicos A missa do orfanato, de 1989, e Bach, de 1996, considerados marcos da dança brasileira. Para se ter uma idéia do tempo de gestação da coreografia, Arnaldo Antunes conta que entregou a música – um mix sinfônico que mistura rock, eletrônica e ritmos regionais a sons de respiração e ruídos orgânicos – em março do ano passado. Quando foi conferir o resultado na sede do Corpo, em Belo Horizonte, ficou deslumbrado. “O Rodrigo captou o lado montanha-russa da trilha, que não dá folga a quem está ouvindo. Me deu aquela sensação do ‘é isto mesmo!’, como se estivesse vendo a música acontecer em perfeita integração”, conta Antunes.

Linhagem – Foram seis meses de ensaio, numa rotina diária de quatro horas, sem falar da obrigatória 1h30 de balé clássico. Ajudado pela irmã Miriam Pederneiras, a Mirinha, 42 anos – ex-bailarina que se reveza entre assistente de coreografia e preparadora física –, o coreógrafo costuma aperfeiçoar os movimentos dos bailarinos a todo momento. Ele começou dançando em 1974 na companhia do argentino Oscar Araiz, abandonando os palcos dez anos depois. Ao todo, já assinou 26 trabalhos, contados os que fez para companhias estrangeiras. A linhagem da família não termina aí. À frente do Corpo encontra-se o talento múltiplo de Paulo Pederneiras, 49 anos, que num lampejo visionário desistiu do diploma de arquitetura para criar sua companhia. Diretor-geral e artístico, Paulo é ainda responsável pela mágica iluminação dos espetáculos. Neste ano também assina a cenografia. Imaginou um quadrado branco de luz, movimentando-se por trás do painel de tule vermelho. É uma cena hipnótica. Com a ajuda de duas feras da eletrônica, bolou o sistema de iluminação da abertura do espetáculo, que funciona a partir da frequência sonora da trilha.

Além de Rodrigo, Paulo e Miriam, o núcleo Pederneiras inclui Pedro, 48 anos, engenheiro civil e ex-bailarino, no cargo de diretor técnico, e José Luiz, 50, médico e fotógrafo, responsável pelas fotos de divulgação. A única que escapou da vida artística foi a caçula Marisa, ex-mulher do roqueiro argentino Charly Garcia, que mora na Alemanha. Existem ainda os “Pederneiras por tabela”, sócios do grupo desde a fundação, como Carmen Purri, a Macau, 44 anos, ex-bailarina e hoje ensaiadora. Com uma faixa etária entre 20 e 24 anos, a terceira geração de sapatilhas do Grupo Corpo reúne gente de várias partes do Brasil. Durante as apresentações no Exterior, uma média de 50 por ano, alguns estrangeiros são agregados, como o alemão Stefan Böttcher, atualmente na parte técnica. Em relação aos bailarinos, todos obrigatoriamente passam por audições. A mais recente, realizada em 1998, atraiu 400 candidatos. Exceto o cachê dos espetáculos, os dançarinos ganham entre R$ 2,3 mil e R$ 3 mil mensais.

Máquina – A azeitada máquina de criar arte do Grupo Corpo conta com outros nomes importantes nos bastidores. Entre eles a arquiteta e figurinista Freusa Zechmeister, há 19 anos na companhia, e o artista plástico Fernando Velloso, o cenógrafo oficial. Com uma mostra na Mônica Filgueiras Galeria de Arte, em São Paulo, Velloso também cuida da agenda internacional do grupo, lotada até 2002. Em dezembro, a trupe mineira se apresenta no prestigiado Théâtre des Champs Elysées, em Paris, no mesmo palco onde dançava o lendário Nijinski. Como se vê, o Grupo Corpo nasceu abençoado pelos deuses da dança.

* Rio de Janeiro, Theatro Municipal, dias 30 e 31 e de 1 a 4 de setembro; Brasília, Teatro Nacional, de 7 a 10 de setembro; Belo Horizonte, Palácio das Artes, de 13 a 18 de setembro; Porto Alegre, Theatro São Pedro, de 8 a 12 de novembro; e Curitiba, Teatro Guaíra, 15 de novembro.