Dono de uma verve humorística para castigar até a si próprio, Mauro Rasi curte o sucesso de Alta sociedade enquanto escreve um musical

Mauro Rasi, 50 anos, saiu da cidade paulista de Bauru há décadas, mas Bauru não sai dele. Tanto que, em fase de estréia no gênero musical, o dramaturgo avisa que sua referência é a terra natal, e não a Broadway como se poderia pensar. Professor de piano — único estudo no qual tem diploma —, Rasi também aproveita para fazer mea-culpa por ter abandonado a música. Ex-viciado em drogas durante dez anos, ele diz que “cheirou” seu piano inteirinho. Por causa desta veia para o humor — queira ou não ele é um dos pais do besteirol —, o musical ainda sem nome será naturalmente uma comédia. Mas, apesar de trabalhar com afinco no projeto, com estréia prevista para junho, em São Paulo, Rasi ainda sente as cacetadas da crítica sobre sua peça Alta sociedade, em cartaz no Rio de Janeiro, com Fernanda Montenegro e Italo Rossi. “Minha vingança é que o público adora e faz o boca-a-boca, porque o teatro está lotado todos os dias”, diz. “A crítica teatral brasileira faz o papel de atravessador, ou seja, fica entre quem planta e o supermercado que vende.”

Mesmo assim, o dramaturgo às vezes acha que não sabe fazer “porcaria nenhuma. Sou um enganador”. Nada, no entanto, sai da boca de Mauro Rasi sem uma dose de ironia. Alguns políticos, por exemplo, são descritos de maneira bem peculiar. Itamar Franco é funk. Luiz Estevão tem botox. Jader Barbalho parece personagem da commedia dell’arte. E o juiz Nicolau dos Santos Neto não merece incorporar o grande vilão por ser muito desconjuntado. Exercitando sua verve, Mauro Rasi recebeu ISTOÉ em sua cobertura de 1.125 metros quadrados, debruçada sobre a praia do Leblon, zona sul carioca, e deu a seguinte entrevista.

ISTOÉ – Como é o seu próximo projeto teatral?
Mauro Rasi

É um musical e deve estrear em junho, em São Paulo. Não tem título ainda. É uma comédia que mistura Quanto mais quente melhor com E la nave va. Ela se passa num transatlântico de luxo, que leva espiões russos, alemães e duas trambiqueiras brasileiras que, sem querer, caem numa intriga internacional. Mas eu quero deixar bem claro que é o meu musical, um musical de Bauru, não é sub-Broadway, sub-Bob Foster. Eu quero vender para a Broadway, quero fazer o caminho contrário.

ISTOÉ – Você está estreando como compositor musical?
Mauro Rasi

Sempre quis fazer um musical porque antes de ser escritor queria ser regente, maestro, concertista. Na verdade, queria ser Chopin, inclusive morrer jovem e tuberculoso. Estudava dez horas de piano por dia e repetia sempre os mesmos erros porque queria interpretar, não queria perder tempo treinando. Eu me sentia a Maria Bethânia do piano. Mas estudei e sou professor de música, que é o único diploma que eu tenho porque parei no terceiro científico. Se for preso, vou para a cela comum, como o Luiz Estevão.

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ISTOÉ – Também assina as letras?
Mauro Rasi

Não, porque essa forma poética me escapa, não sei escrever letras. Eu sempre desfilava com livros de poesia debaixo do braço, mas a verdade é que nunca li. Sei um poema do Mário Quintana, meio do Rimbaud e duas frases do Fernando Pessoa. A poesia para mim está sempre diluída na prosa. O Ronaldo Bastos tem me auxiliado muito.

ISTOÉ – O elenco está definido?
Mauro Rasi

Sérgio Mamberti é o capitão do navio, Cláudia Jimenez deve fazer a brasileira e Jaqueline Lawrence, uma agente da Gestapo. Vou tocar piano no palco junto com quatro músicos.

ISTOÉ – Estar no palco causa inquietação?
Mauro Rasi

Ah, eu sou um tímido muito saidinho. Sou aquela pessoa que de tão tímida acaba na guilhotina! E ainda faz uma frase maravilhosa antes de morrer, como os revolucionários nobres franceses. Aquele tímido que passa por situações que faria inveja ao extrovertido, entende?

ISTOÉ – Qual a sua relação com a crítica?
Mauro Rasi

Não, nunca fui endeusado! Já na minha primeira peça de teatro, em Bauru, minha mãe até queria processar o crítico. Ele falou que eu era um desajustado e devia ser internado no SAM, uma espécie de Febem da época. Eu tinha 13 anos e escrevi uma peça chamada Duelo do caos morto. Pelo título você vê a cabeça de quem escreve. Caos morto! Nem que a pessoa tomasse LSD ia conceber um caos morto. Até hoje, levo muita cacetada, pena que não tenho mais minha mãe para me defender.

ISTOÉ – Você respeita os críticos?
Mauro Rasi

É difícil. Geralmente fico muito decepcionado. Deveriam ser pessoas que sabem mais que os outros e alertam o público. Mas eles são uma espécie de atravessador, aquele que fica entre o cara que planta e o supermercado que vende, como comentarista de futebol. A gente vai ao estádio para ver o Romário, e não o comentarista, não é? É isso.

ISTOÉ – Mas a crítica não tem direito de não gostar?
Mauro Rasi


Todos têm direito de gostar ou não. Se fosse um filme de Woody Allen e se em vez de se passar num réveillon da avenida Atlântica se passasse na Park Avenue, seria cult. Mas a gente sabe que é assim mesmo. Sempre tem a bola da vez. Acho que agora é moda falar mal de Mauro Rasi. Acho que é porque sou bom, só pode ser.

ISTOÉ – A política e os políticos brasileiros rendem dramaturgia?
Mauro Rasi

O que me fascina é o lado perverso da política. Como um país inteiro pode ir para a guerra porque há discordâncias entre duas ou cinco pessoas? Essa briga de Jader (Barbalho) e ACM mostra bem isso. Eles não são o Brasil, ao mesmo tempo representam um Brasil.

ISTOÉ – O que mais o decepciona no quadro político brasileiro?
Mauro Rasi

A feiúra. Eles são pessoas feias, antes de mais nada, muito feias. O Jader Barbalho é um personagem da commedia dell’arte. Ele não precisa de máscara, que já é entranhada em seu físico. ACM é outro horroroso. Essas figuras que transitam pelo poder são, antes de tudo, feias: homens feios, mulheres feias, filhos feios. Tudo fe-i-o! E burros também, ignorantes, passadistas. O juiz Nicolau (dos Santos Neto) é muito desconjuntado para a figura que ele incorpora de um grande vilão. O Luiz Estevão é mais interessante: o botox que ele deve ter, a ginástica, o esforço que ele faz para ficar em cima da carne-seca é admirável. Como essa gente consegue levar pedradas durante meses, diariamente, com toda aquela fleuma? Isso é teatro puro.

ISTOÉ – A Marta Suplicy é feia?
Mauro Rasi

Não, ela é uma mulher linda, uma estrela — fazendo psicodrama, então, é uma maravilha. É uma mulher muito interessante, sem dúvida. Nossa Hillary Clinton. O partido dela, o PT, deixa a desejar; com filosofia tipo “façam o que eu digo, mas não o que eu faço”. Eu não entendo a oposição desse jeito. Querer a CPI numa hora e evitar quando é vidraça?

ISTOÉ – Você vive de teatro? Dá para ganhar dinheiro?
Mauro Rasi

Vivo e não me queixo do que ganho. Naturalmente, não cheguei onde o Bill Gates chegou, mas ainda tenho esperança. Meus quatro gatos moram bem, e eu também. Gosto de morar sozinho. Há um lado meio Antonioni de ficar andando de noite pelos espaços vazios da casa, aí um gato mia discretamente num canto… Quer dizer, discretamente nada porque são gatos italianos, são Rasi, né? A pretensão é ser chique, só que acaba sempre voltando para Bauru.

ISTOÉ – Você fala muito de seus gatos.
Mauro Rasi

É, eles são maravilhosos. Mas agora deram para despencar do terraço, caçando pomba, e têm que ficar presos. Meu coração não aguenta tanto sobressalto. O Bernardo despencou no dia do meu aniversário, dois anos atrás. Ficou aleijado. Ele é irmão de Benjamim e ambos são filhos de Morgana e David. Eles ficam presos na parte de baixo do apartamento, mas têm prisão especial que nem a Jorgina (de Freitas, fraudadora do INSS), em alto estilo.

ISTOÉ – Quantas peças já montou?
Mauro Rasi


Umas 13, 14 profissionais, sem contar o tempo do besteirol. Só estou considerando as que vieram depois de Cerimônia do adeus, que foi quando tive reconhecimento como autor e comecei a ganhar dinheiro com o teatro. A partir daí, passei a ter um projeto teatral, a montar uma peça por ano, ano e meio. Até então, eu vivia de encomenda, de fazer peças, esquetes para amigos. Precisava pagar o aluguel.

ISTOÉ – Dá para se considerar um sucesso?
Mauro Rasi

Dissertar sobre os louros, falar da obra é uma coisa que eu desdenho porque acho que não fiz nada, rigorosamente nada! E não é charme. Eu me sinto um blefe! Tem horas que acho que não tenho talento nenhum, que as pessoas têm razão mesmo, que sou uma porcaria, fico enganando todo mundo. Não sei se aço se escreve com dois ss ou com ç…

ISTOÉ – O que aconteceu com o seu quadro do Fantástico, da Rede Globo?
Mauro Rasi

Ah, não sei. Eu tenho muita personalidade, suponho. Então, sou muito pessoal, não sei até que ponto isso agrada ou não. Não sou um ator, sou eu, com a minha opinião das coisas. Não posso julgar. Não faço a menor idéia se saiu do ar provisoriamente ou não.

ISTOÉ – Você assiste a novelas? Saberia dizer por que as novelas estão reconquistando altas audiências?
Mauro Rasi

Não, esse tipo de dramaturgia não me atrai. É muito grande, muito comprida. Audiência alta? É, as pessoas querem se distrair, né? Eu me distraio vendo tevê a cabo. People & Arts, documentários da GNT e o noticiário. Claro, fico com o controle remoto para ver quem está na Hebe Camargo, para ver se a gente ainda reconhece a Carla Perez. Essa moça ainda vai ter que usar legenda! Programa vagabundo, então, eu assisto a todos, adoro. Acho que televisão tem que ser ruim porque fica mais divertido assim, quanto pior melhor. A TV Senado de vez em quando tem uns filmes maravilhosos. Acho que eles ficam com culpa por não fazerem nada e aí passam uns filmes bons, uns documentários legais.

ISTOÉ – Que público mantém o teatro?
Mauro Rasi

Quem sustenta o teatro aqui no Rio de Janeiro são mulheres com idade entre 50 e 70 anos. Uma peça para fazer sucesso tem que agradá-las. Sem elas, o teatro estaria perdido – na platéia e no palco, porque o teatro brasileiro é um matriarcado, né? Os maiores atores são mulheres. Em dez de primeira grandeza você facilmente encontra sete grandes atrizes, enquanto os três grandes atores são garimpados com muito sacrifício.

ISTOÉ – Grandes atores estão sendo formados na nova geração?
Mauro Rasi

A nova geração é uma incógnita. Quando este ovo da serpente chocar é que vamos saber. Sem nenhum preconceito, pelo amor de Deus, mas parece um grande motel. A televisão transforma a pessoa em grande ator ou grande atriz com um único trabalho. Se você pensa o que é uma Meryl Streep, uma Fernanda Montenegro, uma Glenn Close, uma Cacilda Becker, uma Anna Magnani, vê que elas ralaram muito dentro da profissão. Fizeram inúmeros personagens, de Maria Stuart a Antígona, transitaram por todos os gêneros e tipos da comédia humana, da dramaturgia universal. Aí, você vê uma pessoa que mal fez o Tablado e já vira grande estrela! É muito ilusório. Essa mesma máquina, a indústria do entretenimento, que multiplica esses tipos de monstrengos adoráveis, charmosos e lindos, sem dúvida alguma também exige mais do artista. O tipo ideal teria que ser lindíssimo, mas também cantar, dançar, sapatear, fazer trapézio.

ISTOÉ – O que acha de Paulo Autran e Bibi Ferreira convidarem Adriane Galisteu para fazer teatro e de Gerald Thomas levar Marília Gabriela para o palco?
Mauro Rasi

A Marília Gabriela eu amo, lindíssima, inteligente, babo ovo para ela, assisto ao programa dela sempre que posso. Vi a peça e acho que ela é superior ao Samuel Beckett, que é chato.

ISTOÉ – Mas a peça é de Gerald Thomas.
Mauro Rasi

Mas o universo é becketiano, embora a Marília transforme tudo em fashion e vire um Samuel Beckett da Daslu. O Gerald é maravilhoso, já vi muitas peças dele. Agora, a Adriane Galisteu eu não posso falar nada porque nunca vi o trabalho. Não sei se ela é capaz de fazer outro papel que não o dela própria.

ISTOÉ – Já pensa no próximo projeto?
Mauro Rasi

Vou emplacar uma série de musicais. Não quero mais abandonar a música. Fui para Paris estudar piano e nunca passei na porta do conservatório. Enganei o coitado do meu pai durante um ano, recebendo mesada e falsificando meus boletins. Quando voltei para o Brasil, fiquei dez anos mergulhado em drogas e vendi, ou melhor, cheirei meu piano todinho. Quero retomar a música, tirar o atraso e pedir perdão.

ISTOÉ – Você é vaidoso?
Mauro Rasi

Sou. Nado todo dia, ando pela praia, estou bonito. Não tenho personal nada. Teve uma época que eu adorava academia, mas enjoei, agora acho aquilo um nojo. Vi que aquilo é doença, tirania. Essas pessoas que acham que vão ser felizes se não tiverem barriga, mentira! Barriga não traz infelicidade!


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