Palco de rumorosas manifestações, a Praça da Sé, no centro de São Paulo, abrigou na semana passada um protesto contra a libertação do jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves. Assassino confesso da ex-namorada, a também jornalista Sandra Gomide, Pimenta havia passado sete meses na cadeia e foi beneficiado por uma decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os manifestantes interpretam a libertação do jornalista como prenúncio de impunidade. É preciso, no entanto, distinguir a prisão provisória daquela decorrente de uma condenação. Por lei, colocar alguém atrás das grades antes do julgamento só se justifica em situações extraordinárias. No Brasil, a exceção acabou virando regra. Em todo o País, há 230 mil presos. Deles, quase 75 mil ainda não foram julgados.

“O excepcional virou norma até por força da desinformação de uma parte da mídia, que confunde a prisão cautelar com a definitiva”, afirma o criminalista Tales Castelo Branco. Na prática, toda prisão efetuada antes da condenação definitiva é uma medida de cautela do Estado para garantir o bom andamento do processo e preservar a própria sociedade. Dos quatro tipos de prisão cautelar previstos em lei, a preventiva é responsável pelo maior número de presos sem condenação. Decretada apenas quando há fortes indícios da autoria de um crime, a medida visa garantir a eficácia da futura sentença. Assim, determina que vá para atrás das grades aqueles que estejam ameaçando testemunhas ou que preparam a própria fuga. Também se destina a impedir a ação dos que representam perigo para a comunidade, como os serial killers.

Comoção – Prender antes do julgamento justifica-se ainda quando há flagrante, em crimes intencionais contra a vida a serem julgados por um júri e quando a polícia tem indícios da autoria de um crime, mas não tem provas concretas. Nesta última hipótese, a Justiça costuma determinar uma prisão temporária, que tem prazo fixo para terminar. No caso Pimenta, entre outros motivos, a prisão preventiva havia sido decretada devido ao “clamor público” provocado pelo crime. Com base em 16 decisões anteriores do Supremo, o ministro Celso de Mello decidiu que ele deveria aguardar pelo julgamento em liberdade. “O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar”, determinou o ministro, numa medida cujo mérito ainda será analisado.

Não faltaram reações à decisão de Celso de Mello, entre elas uma sucessão de mensagens na internet, que terminavam sempre com o alerta “Lembrai-vos do vosso primo”. Embora tenha o mesmo sobrenome de Fernando Collor de Mello, o ministro não tem nenhum parentesco com o ex-presidente. Conhecido por sua independência, outro ministro do Supremo, Marco Aurélio Mello, é, sim, primo de Collor.

Usado para justificar a prisão na maioria dos casos com repercussão na mídia, o termo “clamor público” tem origem na Antiguidade. Naquela época, entre diversos povos, quem testemunhasse qualquer crime era obrigado a gritar. O alerta deveria ser repetido por todos que o ouvissem, sob pena de pagamento de multa. O criminoso, por sua vez, era levado para o juiz, que julgava o caso na hora. “O passado está sendo trazido ao presente, para servir às posições mais reacionárias em termos de direito processual”, reclama Tales Castelo Branco.

Abusos – Na opinião do criminalista, estimulada pela mídia, a sociedade clama pela prisão imediata, pois quer vingança e, muitas vezes, os magistrados se deixam influenciar pelo pedido. “Atrás das togas se escondem homens, que têm preconceitos sociais e posições políticas”, diz Castelo Branco. Relator da reforma do Código de Processo Penal, já encaminhada ao Congresso, o professor Petrônio Calmon Filho destaca que, hoje, provisoriamente, o juiz só tem duas opções: prender ou soltar o réu. Caso aprovada, a reforma oferecerá medidas alternativas, como proibir que o acusado frequente determinados lugares. “Ninguém ficará solto sem ônus, mas a punição deve vir com o julgamento”, diz Calmon Filho. “Não se pode executar uma pena por antecipação.”

 

Embora a lei seja clara, seus executores muitas vezes divergem quanto à sua interpretação. No caso do desvio de recursos das obras do fórum trabalhista de São Paulo, o ex-senador Luiz Estevão por duas ocasiões acabou preso, sendo em seguida libertado por determinação do Superior Tribunal de Justiça. Num primeiro momento, a mesma instância não reconheceu o direito à liberdade aos empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Teixeira Ferraz, donos da Incal, que agora esperam pelo julgamento do mérito do pedido. Preso desde dezembro, quando se entregou à Polícia Federal após ficar foragido por mais de sete meses, o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto também não teve direito ao benefício.

Embora ressalte não entrar no mérito do processo sobre as obras superfaturadas do fórum, o criminalista José Carlos Dias lembra que a projeção nacional do caso provocou situações absurdas. “Como autoridade, eu jamais condenaria o juiz Nicolau à expiação pública, como foi feito, espalhando cartazes de ‘Procura-se’ até em estações rodoviárias”, afirma Dias, que foi ministro da Justiça. “Isso é demagogia e dinheiro público jogado fora.” Para o criminalista, outro absurdo que se pratica com frequência é determinar a prisão preventiva de um suspeito pelo fato de ele não ter emprego ou residência fixa. “Não se pode penalizar uma pessoa porque ela não tem onde cair morta”, indigna-se. “Diariamente, vejo que no Tribunal a Justiça é a injustiça do pobre.”

Tomates silvestres – Morador de um barraco na periferia de São Paulo e sem nenhum antecedente criminal, Donisete Borges da Silva estava desempregado há quase dois anos quando sentiu na pele as consequências da exclusão social. Detido pela polícia no meio da tarde enquanto catava tomates silvestres em um terreno baldio, ele acreditou que seria liberado a tempo de ir para a escola noturna, onde fazia o terceiro ano do segundo grau. Acusado de participar de um assalto a um supermercado, seguido de morte, Donisete só saiu da cadeia um ano e sete meses depois, após ser inocentado por um júri popular. “Se não fosse a persistência de meu irmão mais velho, que procurou ajuda por todos os lados, eu estaria na cadeia até hoje”, comentou Donisete. Tudo indica que ele foi vítima de uma acusação injusta. De qualquer forma, prender antes de julgar é uma medida que só se justifica em situações excepcionais. E isso não tem nada a ver com culpa nem com necessidade de punição.